blog caliente.

6.11.03

Tudo em fila; e na fila certa!

Apreciei este texto, no Complot. Dado à contemplação da vida quotidiana decidi, mesmo, copiá-lo, para melhor lhe sentir os cambiantes, à luz caliente do nosso cantinho. Vai em itálico e aspeado.

"A Vida Quotidiana – 1º Episódio: Caminhava por uma ponte sobre uma linha de comboio (creio que o termo técnico é passagem de nível para peões desnivelada) quando reparei que toda a gente circulava pela direita de forma a facilitar a travessia nos dois sentidos. De repente um homem grande com um nariz que mais parecia uma batata-a-murro surgiu da outra ponta decido a atravessar a ponte pela esquerda. Toda uma fila de pessoas teve de se desviar por causa de uma única pessoa, o velhote que me seguia libertou alguns impropérios. Eu fiquei a pensar sobre a inclinação natural das pessoas sensatas a caminhar pela direita e sobre a inclinação de alguns imbecis a caminhar pela esquerda."

Excelente alegoria do Complot. Tem dezassete leituras, eventualmente, mas, assim de repente, deu-me para este desconchavo:

1 – Percebe-se no autor das linhas que, embevecido, cito, um espírito que preza a ordem, o alinhamento. Já observei isto em alguns pastores que apascentavam seus rebanhos com semblante bucólico. Esta é a parte campestre do texto.

2 – A escolha da direita para “faixa inteligente de circulação” causou-me perplexidade momentânea. No entanto, logo acabei por perceber o óbvio: o autor, penetrado de profunda antipatia por tudo o que é anglo-saxónico, eventualmente vítima, certo dia, de alguma das famigeradas rotundas de Londres (e com intocável razão, evidentemente) prefere a faixa da direita para o deslize sorumbático de homens e, quiçà, de viaturas. Trata-se aqui, com toda a certeza, de chamar imbecis aos britânicos. E o autor fá-lo duma forma subtil, induzindo-nos a pensar que se limita a insultar os “esquerdistas do pensamento”. Esperto! Esta é a parte xenófoba do texto.

3 – O autor atribui qualidades físicas invejáveis, do ponto de vista da corpulência, ao prevaricador que caminha pelo lado errado da vida. Perdão, da via. Atribui-lhe um nariz que, eventualmente, o desfeará. Mas o mais tocante é a admissão, por parte do autor, duma qualidade suplementar à sensatez na fila de alinhados que segue, ordeiramente, pela direita. Essa qualidade há-de ter um nome, que agora não me recordo, mas deve andar perto da prudência. Ou da extrema delicadeza. Vejamos: se exceptuarmos “o velhote” que seguia atrelado ao autor, que “libertou alguns impropérios”, toda a ordeira e pacífica fila indiana de indivíduos sensatos se desviou. Eu bem percebo que o que se quer salientar aqui é o espírito de elevada educação da fila incomodada pelo “imbecil”, mas para isso não era necessário atribuir corpulência ao energúmeno. Não tivesse eu levado a cabo uma “besugal” tempestade neuronal, que me fatigou sobremaneira, estaria tentado a pensar que tanta delicadeza se deveria... a boa dose de miúfa de levar porrada! Esta é, pois, a parte enganadora do texto.

Estou a brincar, evidentemente. Eu bem sei que onde o autor botou “direita” podia ter colocado ”esquerda”. E vice-versa. Bem se vê ali que foi ao calhas. O autor apenas quis salientar, num azougue democraticamente “bilateral”, que convém ser calmo, plácido, obediente às regras, poupar transtornos ao próximo, evitando comportamentos antagónicos à maioria. E que essa maioria, sensata por definição, deve tratar com bonomia os prevaricadores, que são imbecis por definição. Este texto seria valorizado com melopeias de violinos. Não, a sério, eu bem o percebi, este meu feitio brincalhão é que me tolda.

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