blog caliente.

1.11.03

O sentido da coisa

A maior parte das pessoas desfruta de cinco sentidos. Há, mesmo, algumas pessoas (geralmente mulheres) que dizem possuir, pelo menos, seis. Digo “pelo menos” porque nada prova que não possuam, já agora, também um sétimo e mesmo um oitavo sentido. E há, ainda, os sentidos especiais, como defende o ministro da defesa, que aprecia imenso o sentido de estado. E, lembrei-me agora, há ainda o sentido do ridículo. Lembrei-me deste nem sei bem porquê, porque não consigo associá-lo ao ministro da defesa...
Enfim, pode haver e há, seguramente, uma carroça cheia de sentidos. O que nem sequer provoca alterações na interpretação da frase trivial “foi encontrado(a) sem sentidos”, porque tanto faz que fossem dois como dezasseis sentidos, estava sem sentidos, ou seja, sem sentido nenhum.
Isto é um preâmbulo de sobeja pertinência mas centremo-nos, por favor, nos cinco sentidos comuns. Que são a visão, a audição, o gosto, o tacto e o olfacto. Deixemos os outros quatro, sobretudo o gosto, que é um sentido muito discutível, e centremo-nos no olfacto. O dito cheiro. E, dentro do cheiro, abordemos sem medo o sub-grupo “cheiretes”, ou “pivetes”. Há quem lhes chame, ainda, “beduns”e mesmo “fedores”. Este último soletrem bem.
Ora bem. Já começo a ver, daqui, narinas oblíquas.
Enquanto trabalho (eu aqui podia dizer “no meu exercício profissional”, mas entendo que a palavra exercício se associa mais aos lazeres que ao trabalho) não consigo desligar o olfacto. Os senhores, provavelmente também não. Bom, pelo menos não conseguem desligá-lo por muito tempo seguido. Pois não? Não, não experimentem agora, até porque, se me lêem, não estão a trabalhar e, além disso, correm o risco de não me lerem até ao fim por ficarem sem sentidos. Vêem que o preâmbulo me deu agora jeito? Pois deu.
Bom, mas, de facto, não consigo desligar o olfacto. E sofro tremendamente com isso.
Cerca de 70% ( a percentagem é ao calhas) dos utentes, ou clientes (eles gostam mais de ser chamados assim, dá um ar mais europeu ao facto de se ter caganeira, gosma, ou gripe...), que vão ao hospital em que trabalho, infelizmente, não se lavam. Não se lavam, de todo. A menos que se considere um acto honesto de lavagem o “passar por água” sítios visíveis (de inverno é, sobretudo, o trombil), não se lavam de todo! Ora, dá-se aqui uma química curiosa, que passa sem o devido realce nos órgãos de comunicação social: quanto menos uma pessoa se lava, mais mau cheiro exala. Isto é uma lei comparável à de Lavoisier, com a vantagem de ser acessível a todos. E é demonstrável. Eu desafio quem me lê a apreciar com languidez e vagar a evolução do seu odor corporal à medida que os dias passam, indolentes, sem que gotícula de água e partícula de sabão lhe atenue a enxúndia. Façam isso fechados num sítio qualquer e venham aqui para a semana, relatar as vossas experiências.
Seja como for, sustento, os utentes lavam-se pouco. E têm outra lamentável mania, que é quase paradoxal: descalçarem-se. O utente português médio, em pedindo-lhe para se deitar numa marquesa, daquelas apetrechadas de rolo de papel “desenrolável” à medida das necessidades, tomando consciência da alvura do retalho de papel que lhe cabe, sente-se possuído de um pudor relativíssimo. E mesmo que se lhe diga “o senhor deite-se aí, se faz fineza, para que eu lhe possa palpar essa barriga que tanto o apoquenta”, ele não o faz sem antes, numa atitude de suprema cortesia, descalçar os sapatinhos. Botar os sapatos enlameados na brancura do papel, “senhor doutor”? Nem pensar!
Eu já tenho alguma experiência, sei no que aquilo vai dar, seguramente. E é com veemência que lhes peço, sempre: “Não! Pelo amor de Deus! Não é preciso! Deixe estar!”. Mas não funciona. Eles descalçam-se sempre.
Uma vez descalços, há sempre um período de tempo, variável, em que pensamos que “afinal, não...”. É um período de angústia esperançosa. Este período dura, em média, 15 segundos. Há utentes em que dura menos. São utentes altamente inflamáveis e explosivos. É o chamado “utente que usa peúgas que, em lhes dando vida, saltariam elas próprias, sozinhas, aliviadas, para dentro dum tanque da roupa cheio de água saponificada”. Este utente fede e, curiosamente, não sai de cima. Porque o fedor, sendo quente, sobe. E não sai de cima. É a chamada “Lei da ascensão do bedum”, uma má lei, porque o pivete devia depositar-se, ao menos, a nível do solo (o ideal seria o subsolo, que se lixassem os mineiros!).
Findo este período de expectativa angustiada (apenas comparável, na intensidade da angústia, ao emergir fugaz da popa do Titanic antes de afocinhar de vez no oceano), a atmosfera circundante torna-se densa, oleosa, adocicada, vibrante, viscosa, quase palpável. Ou seja: a atmosfera pode ver-se, tocar-se, ouvir-se, em certos casos degustar-se... não devia, de todo, era poder cheirar-se.
Os meus amigos façam-me o favor de multiplicar isto por dezenas de utentes, durante dezenas de horas. E de dividir isto, já que estamos em maré de aritmética olfactiva, pelos vossos narizes sensíveis. Será constatada impregnação tão profunda, tão hipodérmica, tão visceral, que nem um duche prolongado vos devolverá a uma existência agradável.

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