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1.11.03

O cro-magnon

Que me perdoem os homens bem intencionados que não se revêem no que eu vou dizer de seguida. Suspeito, contudo, que quase todos nascem com essa fatal predisposição para a vaidosa competição intramachista que lhes turva a razão, em consequência do que se apresentam tão limpidamente despidos aos olhos do outro género - o oposto. Não, neste caso, o defeito não está em quem vê, porque nem sempre é certo que beauty lies in the eyes of the beholder. Há, aliás, muitas mulheres que estão completamente desatentas ao fenómeno da cro-magnice, do qual só se apercebem quando dele se tornam vítimas. Embora no sentido impróprio do termo; é que, na verdade, isso não incomoda, antes enternece. Eu já me explico.

O sub-género masculino aqui designado por cro-magnon é profundamente hetero-determinado. O cro-magnon não tem, de facto, qualquer culpa de o ser, porque ninguém escolhe ser cro-magnon, como se escolhe ser dentista, carpinteiro ou amolador de facas. Ser cro-magnon é, na verdade, tão fatal como nascer loiro: pode-se, até, pintar o cabelo, mas a coloração cromossómica permanece e ressurge assim que a máscara colorante se esvaneça. O cro-magnon é um homem inseguro e desconfiado, embora, na aparência, se mostre sempre confiante. Valoriza e defende aquilo que domina; censura, critica e difama aquilo que lhe escapa, porque não compreende.

Mas é nas relações com o sexo oposto que o cro-magnon mais revela a sua cor. O cro-magnon é um ser que vive profundamente atormentado com o pesadelo da traição. O cro-magnon não tolera, nem sequer em pensamento, a ideia de que a sua mulher olha para outros homens (sendo indiferente que este seja ou não cro-magnon, bastando os sinais exteriores da testosterona) e tem frequentes pesadelos em que a vê envolvida em actos adúlteros. Não porque lhe doa o facto de ela o ter traído, mas sim porque a traição, ainda que apenas imaginada, significa perder o respeito dos seus pares, os restantes cro-magnons. Um proscrito. Um macho sem poder nem honra.

Por isso, o cro-magnon só assume compromissos com mulheres de respeito. Sendo certo que as mulheres de respeito são aquelas que não são objecto da cobiça alheia e que, caso tenham esse potencial, o escondam. Que são sóbrias nas atitudes, reservadas na expressão e castas no pensamento. Que, se trabalham, nunca ganham mais dinheiro do que ele. A mulher do cro-magnon não olha directamente nos olhos de outro homem e não exterioriza a sua opinião sobre coisa nenhuma, a não ser para reforçar as razões do seu amo. A mulher do cro-magnon cedo percebe que, para que o cro-magnon a deixe sossegada, basta que frequentemente lhe diga “sim, claro”, “tens toda a razão, como sempre” e “qualquer outro homem é um cro-magnon se comparado contigo”, tudo isto de preferência em voz baixa e reverencial. E assim, indoors, no lar doce lar, o cro-magnon vive feliz e tem assegurada a sua tão cara segurança. E está em paz com a comunidade de cro-magnons.

O problema é cá fora. A tentação satânica das mulheres que, para um cro-magnon, não são de respeito. O cro-magnon aterroriza-se diante de mulheres menos reservadas, que vestem vestidos justos e decotados e opinam sobre os mesmos assuntos que ele opina. E até sobre outros assuntos, dos quais ele nunca ouviu falar. Confunde-o, ao cro-magnon, que as ditas mulheres argumentem contra à opinião que anteriormente ele expressou. O cro-magnon sente-se intimidado por estas mulheres que, aparentemente, não só não precisam dele para nada como o paternalizam. E é nessas alturas que o cro-magnon mais se entrega aos ímpetos da verborreia boçalmente venenosa sobre essas mulheres, que não são de respeito, reduzindo-as à vil condição de meretrizes. E se uma dessas mulheres sorri, ainda que displicentemente, para um dos cro-magnon, então é hora do recreio. E a comunidade cro-magnona ri histericamente, entre as bejecas e os tremoços, mas, afinal, como um bando de adolescentes púberes, só de pensar na possibilidade de aquela mulher estar no encalço de um deles: “A gaja está no papo, ó Alfredo!”. E ela nem sonha que riem por isso, porque, quando sorriu, estava na verdade a pensar quem iria ganhar as eleições do Benfica.

E tudo isto, como começei por dizer, é enternecedor. Abençoados sejam.

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