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25.11.03

Elites de papel

Discussão pública de dois temas distintos como se fossem um só. Evidentemente, na RTP-Um.
Aparentemente, para os intervenientes, reflectir sobre a carência de médicos em Portugal (entendidos como prestadores de cuidados de saúde) e sobre a investigação científica nas Faculdades de Medicina, constitui-se num problema uno e indissolúvel. Pelo meio questiona-se, ainda, a capacidade formativa das Faculdades, metendo no mesmo saco a capacidade de formar profissionais de saúde (competentes, humanistas, universalistas, etc...) e a possibilidade de proporcionar aos universitários (no caso, aos estudantes de Medicina) outras actividades importantes, indispensáveis, mas menos. Do meu ponto de vista, desculpem, neste momento, bastante menos. Falo da investigação científica.

Entre citações de Abel Salazar (é pacífico que um médico, como um engenheiro de sistemas, ou, mesmo, um torneiro mecanico, será mais completo na sua actividade humana se não souber, apenas, do seu ramo de actividade técnica; não seria necessária a intervenção de uma cientista que “esteve no estrangeiro” para tal lição...) e intervenções de secretários de estado, ficámos cientes do seguinte:

1 – Há falta de médicos em Portugal, sobretudo em áreas importantes como a obstetrícia, a pediatria e a clínica geral.
2 – Há portugueses (cerca de um milhão e meio) que não têm médico de família.
3 – Há muitos médicos a atingir a idade da reforma, o que agravará o problema das carências a prazo calculado.

Não ficámos a saber, mas sentimos isso diariamente, já sabíamos: os portugueses, duma maneira geral, têm má opinião sobre o seu sistema de saúde. E, muitos dos portugueses que têm essa opinião, são médicos. E alguns, de entre esses médicos, podem manifestar honesta e veementemente essa opinião sobre o sistema, porque, muito simplesmente, não o minam por dentro. Eu esforço-me por pertencer a este grupo e é por isso que “lanzoo”. Sabem o que é “lanzoar”? Ora bem.

Posto isto, a questão ... são duas.

1 – Se há falta de médicos em Portugal e estão identificadas as especialidades e as áreas geográficas de maior carência, há que formar mais médicos, explicar-lhes que o sistema (o povo, meu Deus!) carece deles – e por isso, só por isso, muitíssimo bem a meu ver, vai investir mais na sua formação – e que, em querendo, serão médicos porque o país deles necessita. Nobre razão.
2 – Se o país se sente envergonhado com a escassez de formação científica (a investigação) nas Faculdades de Medicina, o país que invista, imediatamente e em força, nessa odisseia galvanizante. Estejam à vontade! Criem-se investigadores, em barda! A meu ver devia o país, prioritariamente, investir na formação de médicos que soubessem ver doentes, que pelos vistos faltam, esforçar-se no desiderato comezinho de “qualquer português há-de ter um médico”. Mas o país, na sua sabedoria antiga, pode achar o contrário...

Ora, acontece que o país não acha o contrário, sejamos justos. A bem dizer, o país não acha nada. O país quer tudo (mais e bons médicos, mais e bons investigadores, tudo misturado...) e, nesse querer absoluto, tem andado a pagar especializações em cardiologia, oftalmologia e otorrinolaringologia, quiçà em dermatologia, especialidades que se vocacionam (de forma indesmentível, andamos aqui a brincar?) para... enfim, para a exploração privada do saber. Frase elegante, que define a verdadeira autofagia dum sistema promíscuo que é o nosso. E o país alinha nisto “descurando de si”. Um país que se descura por algumas purpurinas. Não é propinas, amigo Dupond (lembrei-me agora do meu vizinho vilacondense!), é purpurinas. É que são, mesmo, resmas de fogo fátuo.

Quanto à capacidade formativa de médicos, desde logo vocacionados para as carências de Portugal (e só assim concebo que Portugal neles invista), as Faculdades têm-na. O meu curso, no Porto, tinha “240 e tal” alunos. Em 1985. Claro, havia dois turnos, para as teóricas. E ninguém ficava de pé. Ora, acontece que os cursos de agora são menores, senhores! Acreditam? São bem menores! Pois é que são mesmo! E doentes, senhores, infelizmente, continua a havê-los em barda. Eles brotam, aos borbotões, da nossa sociedade pobre, triste, mal lavada. E professores parece que sim, também os há. Alguns até se mantêm ocupando, "estoicamente", vagas em quadros hospitalares, apenas por esse “docente” motivo, já que a actividade clínica, enfim, se calhar legitimamente, os não seduz. Pelo menos nos hospitais públicos...

Não baralhem a formação de necessários médicos, sem hesitação direccionados para as necessidades dos portugueses, com a (mais dispendiosa, porque mais específica) formação de cientistas "tout-court" (que eu não disse, em parte nenhuma, que não são importantes) e verão que resolvem o problema da assistência médica, pelo menos na sua vertente básica, em Portugal.
O resto virá depois. Os alicerces antes do telhado, e que os alicerces sejam cada vez mais sólidos.

Em alternativa, deixemos andar assim. Deixemos que Portugal pague, do seu bolso, a formação de empresários da saúde. Há-de ser possível, sem dúvida, regulamentar a actividade duma legião de profissionais liberais vocacionados para “atender” quem puder pagar. Sobretudo se os casos graves continuarem a ser, depois, resolvidos no sistema público. Que há-de ser, sempre, o domicílio dos melhores médicos. Eu isto afirmo assim, seco e consciente. Sistema público esse que, por essa vindoura e altaneira altura, se chamará, simplesmente, “sistema dos pobres”. E com razão, porque esta é uma alternativa pobre, do ponto de vista civilizacional e da cidadania. Não há condomínio fechado que justifique um ghetto. E, muito menos, que nele se justifique. Ao menos que enrubescessem ao defender certas coisas.

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