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17.9.03

Com os olhos mais brilhantes

Bonito documentário sobre a pesca, à linha, do bacalhau, nos anos sessenta. Esteve a dar na RTP2, tendo como base um filme realizado por canadianos francófonos (fixei que um deles se chamava Lemieux) que viajaram num lugre português (Santa Maria Manuela era o seu nome) à Terra Nova.

As imagens da época, povoadas de rostos barbados à volta das rugas, alumiados por olhos semicerrados de olhar o longe, fizeram-me a impressão duma epopeia. Aqueles homens fizeram-me lembrar figuras do “presépio de lata” do Carlos Tê, violentamente embaladas pelas vagas, pela esperança, pela coragem e pelo medo, sob um céu que oscilava entre o querosene e o chumbo total.

Entremeando o filme, relatos na primeira pessoa feitos por gente que lá esteve. Um senhor Agonia, que é da Póvoa como qualquer Agonia que se preze. Os Agonias, são notórios, respeitáveis e respeitados, bem para além de A-Ver-O-Mar! Um senhor Nascimento, que na altura estava internado no Hospital da Póvoa para ablação duma pedreira vesicular. E outros. Nem todos poveiros, evidentemente. Contudo, em todos eles se via ali piscar, nos olhos, uma luz antiga, como se fosse um farol velho, gasto, mas redentor, ao recordar façanhas e perigos, conquistas e perdas, valentias e medos. Vividos em comum, mas individual e sentidamente sofridos.

Falou-se ali de “ganâncias”, despindo a palavra do visco empresarial que hoje em dia se lhe cola, porque ganâncias, naquela altura, significava apenas querer muito uma coisa e lutar por ela. Ganâncias de trinta mil réis....

Não havia muita água, imaginem-se sem água! A água das lavagens só se deitava fora quando se conseguia cortar com uma faca! Disse isto o antigo imediato do lugre, com um cintilar tímido e brincalhão no olhar. Tempo de rapaziadas, de quem nunca deve ter sido menino, mas hoje é homem. Como, afinal, sempre foi. E como, meu Deus! Mesmo os que morreram, como um que lá ficou, na Terra Nova, em sepultura estrangeira engalanada de dizeres portugueses, orgulhosamente solitário na sua certeza do esquecimento.

Como a epopeia portuguesa dos bacalhoeiros se encontra bem documentada e ricamente descrita por quem sabe mais, infinitamente mais, do que eu, vou ficar por aqui. Não me apetece sujar a beleza que acabou de me adoçar com análises lúcidas sobre a sociologia e as políticas, que fizeram homens sujeitar-se a soçobrar, tristemente, em mares gelados de ilusão e desencanto. Há momentos que valem apenas por si, desenquadrados do tempo e das conjunturas. Se calhar, é só por isso que conseguimos encontrar-lhes beleza.

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