Coisas que acontecem no Natal
Entrou bravo, de olhos mansos. E de esposa a tiracolo. Não reparei logo nela, ainda me engano muito nos reparares, tanto é que reparei só nele.
Disse que sabia que tinha um cancro e que, possuidor dessa ciência, tinha perguntas a fazer-me.
Eu também teria, se fosse ele. E também terei, quando for eu. E nem sequer serão perguntas diferentes das dele, serão perguntas muito semelhantes. Aliás, nos cancros como em quase tudo, há só uma pergunta importante a fazer: pode é a pergunta dividir-se em parcelas, como todas as perguntas, mas a pergunta - a puta da pergunta - é sempre a mesma.
Fui-lhe respondendo muito, porque ele perguntou muito; e a mesma pergunta, feita de muitas maneiras, requer muitas respostas: a mesma resposta, entregue de muitas formas.
Compreendeu e aceitou a quimioterapia. Combinámos datas. Ele sempre bravo e de olhos mansos.
Convém aqui explicar que a mansidão dos olhos não é um pecado do carácter: os nossos olhos são sempre uma espécie de farol filtrado de nós - encurtando distâncias, pareceu-me ter ele, apenas, como todos os homens bons, um bom filtro.
Peguei no papel do "consentimento informado", que é um papel que me enerva sempre. Não gosto dele. Por mim extinguia-o. Eu explico o que diz lá. Diz que fulano, que abaixo se assina, foi informado da necessidade, das prováveis vantagens e das eventuais complicações do tratamento e que, nessa conformidade, aceita o que lhe é proposto por cicrano, que também se assina - mais abaixo ainda.
Antes de voltar ao caso, apetece-me agora explicar por que é que o caralho do papel me enerva. E por que o extinguia.
Enerva-me porque quem o assina o faz como quem assinasse uma espécie de termo de responsabilidade. É isso que pensamos todos, geralmente, mantendo sempre os olhos mansos, perante qualquer assinatura. Mas é falso. Quando vejo que me estão a assinar o papel assim, dessa maneira douda e quase suicida, peço-lhes para pararem e apetece-me logo esganar dezoito gestores e o primeiro-ministro da gestão. Não assinam nada disso, assinam apenas que os informei do tratamento e que concordam com ele. E que assumem, comigo, o que daí nos vier. Não assinam que, se por acaso eu os foder com um erro meu, a responsabilidade é deles: a responsabilidade do tratamento é sempre minha, nesse caso - e, em sucedendo, pedirei sempre desculpa, mesmo que não a mereça.
Extinguia-o por isso mesmo: sendo assim, não é preciso.
Voltando ao caso. Perante o papel, pareceu-me que ele ia assiná-lo firmemente, como se apertássemos as mãos na mansidão dos olhos de ambos.
E ia. Mas uma voz fininha escorreu pela esposa abaixo, quebrando tudo - uma hora inteira de tudo, ou de quase tudo - sem remédio.
Sem remédio, sim, porque conforme digo que só há uma pergunta, embora possa fazer-se de muitas maneiras, também mantenho que só há uma resposta, mesmo que lhe variemos os matizes. Eu conto-vos. Escorreu-lhe assim, por ela abaixo, tipo baba sonora, enquanto eu me espantava, como se fosse virgem desta merda, diante dos olhos malignos, pequeninos, muito juntos e com a vivacidade baça dos baços, que ela tinha muito pouco acima da boca: "e se ele se fosse tratar mas era ao Porto?, hem?, não era?, o Porto sempre é o Porto, não é?, que é que você acha disso?, hem?".
Isto era só comigo?
Ou era só com ele?
Ou era só com ela?
Ou era só com toda a gente e contra a gente toda?
Pedi-lhe o papel de volta, levantei-me e desejei-lhe Bom Natal.
A ele. Só a ele, chamem-me o que quiserem, só a ele, a ela não.
Pedi-lhe, a ele, para voltar para a semana, já depois do "Bom Natal", possuidor de ciência maior - sobre detalhes importantes - do que saber que tem um cancro.
Essa ciência, a ciência da ciência dele, também eu a tenho: o cancro é dele, a ciência é de ambos.
O Natal parece que é de todos, ao menos a quadra, portanto é meu também. E, no meu presépio, a vaquinha não acende rastilhos de pólvora seca, aquece apenas o Menino.
Ele saiu do avesso: saiu manso, de olhos bravos.
Se escolhêssemos agora uma frase que ambos, ele e eu, pudéssemos gritar ao mesmo tempo, num descampado frio com uma ribeira dentro, onde se pescasse noite fora - nem que fossem bogas ou rabecos -, seria uma frase curta e digestiva: imagino que seria qualquer coisa como "grandessíssima puuuuuuuuuuta!".
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