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30.4.06

Eça e Bulhão Pato

Este escrito, no DN, é interessante.

De facto, o lírico Bulhão Pato, o autor da "Paquita" e doutros suaves trinados, acabará por ficar lembrado - enquanto se não extinguir, ao menos, a fauna bivalve - como o "senhor das amêijoas". Se Tolkien tivesse tido noção disto, às tantas, tinha parido outra trilogia.

Mas deixemos isto, declarando, contudo, que não me parece que Eça penetre o imaginário das novas gerações apenas pela recordação do talento (ia dizer "do cu", mas reparem que não disse, contive-me) da Soraia Chaves.

No texto que refiro afirma-se que Bulhão Pato se terá sentido ofendido por ter sido caricaturado, nos "Maias", através da figura de Alencar.
Isto é verdade. Que se sentiu ofendido. Pelo menos manifestou-se sobre o assunto, com veemência. Mas não parece que colha a teoria da intenção da caricatura, como o próprio Eça, em carta a Carlos Lobo d'Ávila, se encarregou de demonstrar.
A história, que aliás tem alguma graça, não foi bem assim.

Alencar era, na história de Eça, um poeta lírico, já entradote na sua antiga juba de velho leão, com grandes bigodes e - como costumavam ser todos os líricos que gemiam, por essa altura, juras de amor entre suspiros - um bocado lúbrico, generoso e arrebatado, devoto adorador de meninas (João da Ega, num momento em que se pegaram ambos por divergências sobre literaturas, patriotismos - e acerca da virtude da irmã "do Craveiro da Ideia Nova"-, chega a recordar-lhe um epigrama chistoso, em que se dizia que "o Alencar de Alenquer quer cacete!"), mas que se sentia incomodado com as correntes naturalistas. Tinha, portanto, defeitos e qualidades que iam "da carraspana ao cavalheirismo".

Mas não tinha pêra. De facto, Alencar não tinha pêra: só bigodes. E era alto e esgrouviado, ao contrário de Bulhão Pato, um pícnico de pêra.

Eça entreteve-se a desfazer-lhe essa teoria da conspiração - na qual Pato teve o apoio de Pinheiro Chagas (outro alvo predilecto das polémicas do poveiro, "sempre esse homem fatal!") -, na tal carta a Lobo d'Ávila.

Depois de explicar as dissemelhanças físicas, Eça vai mais longe: afirma que Pato não é Alencar porque, em nenhum momento, ao criar Alencar, pensou em Pato; e, ainda mais, afiança que se inspirou, sempre, noutra pessoa. Diz, mesmo, que o personagem Alencar já perpassa no Crime do Padre Amaro, num relance, sob a forma de Carlos Alcoforado, "esse poeta muito olhado na praia da Vieira".

Podia bastar-lhe isto, como desagravo. Mas não.
Eça, além de "torturar o adjectivo", era verrinoso e perdoava mal a quem o vilipendiava. Pelo meio insinuou que nunca lera Pato, embora com imensa pena, certamente.

E pariu ainda isto, agora ipsis verbis:

Em quais das virtudes ou dos vícios de Alencar se reconheceu o poeta da "Paquita"? Se foi nas virtudes, então aqui vemos um homem que solenemente se adianta, cercado dos seus amigos, e exclama para o público, de fronte alçada: "Apareceu aí um romance em que há um tipo de poeta que tem lealdade, generosidade, uma honradez perfeita!... Ora, com tão esplêndidas qualidades só eu existo, em Portugal. Esse poeta, portanto, sou eu!".
Neste caso, nunca nas idades modernas se teria visto um tão burlesco exemplo de pedantismo e de farófia.
Mas se o senhor Bulhão Pato se reconheceu nos defeitos, então aqui temos um homem que, em meio dos seus amigos, se acerca do público e declara com serenidade: "Apareceu aí um romance em que há um poeta que é um medíocre, um palrador, um farfante e um piteireiro. Ora, com tão pífias qualidades, só eu existo em Portugal. Esse poeta, portanto, sou eu!"
Neste caso, nunca no mundo se teria visto um tão doloroso exemplo de rebaixamento e de aviltamento próprio.

Ainda hoje sorri sozinho ao reler isto.

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