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21.1.06

of human bondage

Todos sabemos da banalização da crueldade. E de tudo. Falar muito nas coisas, pensar muito nelas, pode dar nisto: excesso de estimulação cansa, mesmo, músculos de rã. Isto aprende-se na escola, numa experiência simples, em que, para o fim, o músculo da coxa da rã (e deve passar-se o mesmo com o da nossa consciência, fui eu que descobri este músculo, há alguns anos, embora não venha nos tomos das anatomias) já nem responde.

Tem-se debatido o problema (sempre problemas, eu sei, isto é assim, uma sucessão de problemas) das sevícias que determinadas crianças sofrem, nas escolas, às mãos de outras. As outras são, geralmente, mais. E mais crueis. Maiores é que não sei, uma por uma. E tendem ao liberalismo competitivo, à ausência de regras que não emanem da singela Constituição da Alcateia, e dela emanam muito poucas e muito más. A criança que sofre é, geramente, só uma. No sentido de que é fácil, assim, para quem vem de alcateia atrelada, atacar a presa mais tenra e desgarrada do rebanho.

Isto transporta-se para vida adulta. Crescemos assim. E pode prolongar-se para além da morte, como herança: já não há inferno, lê-se por aí, e não o há, de facto. Não há castigo, paciência, senão terreno. E a polícia, medo real e terrestre, vigariza-se, é sabido.

Tudo se justifica pela natureza humana, como se saber da existência duma natureza humana que é um bocado lamacenta, como se reflectir sobre ela, não impussesse mais nada que reconhecê-la e reflecti-la, como fazem um detector banal e um reflector comprado nos chineses. Mais: como se o simpes reconhecimento dela a legitimasse. Mais ou menos como se lê aqui, não é para pegar, quero que se foda, mas lê-se isto (o que caracteriza especificamente a espécie humana não é só a «dignidade humana». É, também, a inteligência, a cobiça, a moral, a mediocridade, o altruísmo, a inveja, e por aí fora) como se fosse - e era - um argumento desprovido da condenação do seu próprio reconhecimento como argumento fraco. E fica-se desconsolado.

Uma miúda que eu conheço tem sido vítima disto, na Escola. Os professores foram, agora, quando se soube, alertados pela Mãe. Provavelmente já sabiam, mas os miúdos da alcateia, hoje em dia, ameaçam com os pais que têm em casa, como se os pais que têm em casa valessem grande merda, sendo eles assim. E isso tende a aumentar o limiar de percepção dos professores, eu compreendo: é dificil estar só, no meio da selva de Darwin das novas melopeias, sem assobiar um bocadinho para o lado. É engraçado, isto: uma teoria elaborada para explicar coisas da vida animal, há muitos anos, agora adoptada, por quem se cuida quase excelso e incorpóreo nas suas meras análises e nas suas meta-análises, como justificação para quase tudo. A selva substantiva que se transforma, por artes de desleixo, em imperativo verbo. "É assim" como se se dissesse que "tem de ser assim".

A miúda também tem pais, mal feita fora, que tomarão as suas medidas; sei que sim.
Aqui, em casa, já foram decididas duas coisas, pelos meus filhos, que são amigos dela, até são mais que isso, embora sejam um bocadinho mais velhos e de turmas diferentes:
1 - Vão procurá-la mais, nos intervalos. Teoria da integração do cordeiro só.
2 - Quem lhe bater leva, imediatamente, na tromba (e eles têm tomates para isso). Teoria do "isto é assim, mas não tem de ser e vai deixar de ser". Mesmo sabendo que isto dar na tromba pode implicar, e implica quase sempre, levar nela também.

E outras duas foram decididas pelos pais deles, dos meus filhos, que vão como 3 e como 4, porque são aditivas e não se misturaram na primeira conversa, por motivos de deixar à solta os tomatinhos de quem tem de os exercitar, a ver se tilintam:
3 - Se a coisa tocar a chamar paizinhos maus, os pais da miúda também não estão sós contra a moirama. Vamos a ver, então, o cheiro das tintas.
4 - Se os conselhos executivos, os pedagógicos, os directores de turma, o mundo inteiro, tiverem mais gente assim, menos condescendente com as pequenas e as grandes inevitabilidades da natureza humana, mesmo enquanto infanto-juvenil, escusam os professores de ter medo dos alunos ameaçadores, dos pais perigosos deles e, mesmo, dos tios "que até são ciganos ou que, não o sendo, fazem carrancas". Escusa a natureza humana de ser uma espécie de cavalo manso atado ao poste da inevitabilidade da sua condição de atado a um poste ainda mais manso, que um cavalo à solta é bem melhor. Porque corre sempre livre, sem deixar de ser manso; mas tem, ainda assim, obrigação de relinchar alto, de escoicinhar quando é preciso, abanando a crina sem vergonhas, para escrever um prado que apeteça a muitas mansidões.

A natureza humana não tem de ser, só porque tende para isso, "of human bondage". Há um belo livro que explica (e quase expia) isso muito bem. A natureza humana não é um jogo de servidões, a menos que o árbitro esteja sempre comprado pelos que têm maior PIB (Poder Influenciador de Bacocos) e não se possa, merecidamente, pendurá-los pelas patas, ao árbitro e aos PIBes, para os aliviar um bocadinho do cagueiro mole, ainda que isso seja chato e lamentável: é chato, é lamentável, mas impossível é que não é.

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