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29.12.05

é sábado no encéfalo

A notícia deve ser lida a seco. A informação deve chegar assim, singela. É esta: "Os médicos de serviço nas urgências hospitalares vão passar a receber as horas extraordinárias em função do número de doentes que atendam".

Parece lógico. Eu gosto desta notícia. É uma notícia simples, expõe factos: vai passar a ser assim, vírgula, ponto final.

Querem saber alguma coisa do regime de trabalho dos médicos hospitalares? Eu conto. Tentarei ser claro, coisa que me é cada vez mais difícil e nunca me foi fácil. E imparcial, o que é empresa sempre complicada. Mas consegue-se. O MEM já abordou isto pela rama, aliás, mas agora não encontrei o "link" directo.

Para facilitar, evitemos a confusão dos regimes de 42 horas em dedicação exclusiva com os de 35 horas sem dedicação exclusiva. Registo aqui que a dedicação exclusiva me parece um bom princípio, que me parece bondosa a separação nítida entre o que é serviço público e o que é serviço privado, mas admito que possa haver práticas satisfatórias mesmo na mistura - se bem praticada - dos dois conceitos. Não discutamos isso agora.

Imaginemos que há um único regime: 42 horas, dedicação exclusiva. É o meu e o de muitos dos especialistas das áreas consideradas básicas e essenciais, a Medicina Interna e a Cirurgia Geral.
Bom, como se distribui este tempo, em regra? Consideremos os 5 dias úteis da semana, de segunda a sexta. Em cada semana, essas 42 horas incluem (salvo as excepções previstas na lei) 12 horas de prestação de serviço na Urgência. É como se a Urgência, que não tem um quadro próprio, sub-contratualizasse com os médicos dos outros serviços a sua presença durante 12 horas, com duas nuances engraçadas: essas 12 horas são obrigatórias, podem ser diurnas ou nocturnas, e estão incluídas no horário normal do médico. Não são pagas, obviamente, horas extraordinárias por esse serviço. Isto é assim.
Bom. Restam 30 horas, para distribuir pelos outros quatro dias da semana, o que dará uma média de 7 horas e meia diárias, mas a distribuição pode ser feita doutra forma, e é, geralmente, para assegurar que o internamento tenha apoio diário até às 20 h. Estes horários, geralmente, cumprem-se. Com a elasticidade que pode impor um caso mais grave (que nos obriga a ficar mais tempo) ou uma placidez ocasional (que pode permitir que saiamos mais cedo). Não é isto que está em questão, porque, até aqui, não se falou de horas extraordinárias.

A lei diz que qualquer médico, para além do seu horário normal (que já inclui 12 horas na urgência) pode ser obrigado - sem necessidade, portanto, de ser obtida a sua anuência para o efeito - a prestar mais 12 horas no serviço de urgência. São horas, portanto, extraordinárias. Podem ser diurnas ou nocturnas, também, passando o médico a trabalhar 54 horas semanais, nesse caso.

A necessidade das instituições (e, presume-se, de quem a elas recorre) criou, ao longo dos tempos, sobretudo em hospitais mais carenciados em recursos humanos, uma espécie de "obrigatoriedade geral" dessa excepção legal que, na sua génese, se previa "extraordinária". Ou seja, como é bom de ver, presume-se que qualquer articulado deve prever casos excepcionais, e que foi, apenas, essa previsão de excepcionalidade que presidiu à feitura da lei, se ela foi feita de boa fé. E deve ter sido. Contudo, na prática, o que se verifica é que a generalidade dos médicos presta 24 horas seguidas na urgência: as 12 incluídas no seu horário e as 12 a que é obrigado "se for preciso". E é sempre, ou quase sempre.

Essas horas são penosas. E existe uma tabela de pagamento dessas horas extraordinárias, que está publicada. A hora é calculada pelo vencimento/hora do médico, havendo horas que são pagas a 100%, outras a 125% , outras a 150%, outras a 175% e ainda outras a 200%. Conforme é de dia ou de noite, consoante é ao fim de semana ou num dia útil, enfim, essas variantes que foram introduzidas para, presumo eu, estimular e premiar um esforço suplementar obrigatório.

Permita-se-me, aqui, um pouco de subjectividade. A experiência conta, é nela que nos baseamos, quase sempre, para analisar seja o que for. E a subjectividade fornecida pela experiência, se for honesta - e a minha é, acredito muito que sim -, constitui-se num suporte da objectividade: longe de a desvirtuar, empresta-lhe verosimilhança.
Já ganhei muitas horas extraordinárias, a maioria das quais dispensaria. Já cheguei a fazer 3 turnos de 24 horas numa semana, já trabalhei 48 horas seguidas. Nunca as pedi, a essas horas privilegiadas. Não conheço nenhum colega que as tenha pedido, aliás, dos tantos que, como eu, já passámos por isto. Em muitos desses casos, consegui descansar alguma coisa, tive noites, raras, em que dormi, seguidas, 4 horas, o que é bom. Até porque, para essas horas extraordinárias serem assim consideradas e pagas, há que cumprir o trabalho normal no dia seguinte. Lembro-me dum tempo, e estou a falar de anos a fio, que eu já ando nisto há quase vinte anos, em que entrava no hospital às 8 e meia da manhã de terça feira e saía às 16 horas de quarta, num estado bovino de missionário que se cumpriu e chega a casa derreado de fé, pedindo algumas horas de irreligioso coma.

Há, decorrendo paralelamente a este regime, um outro, diferente. É o de prevenção. Estão neste regime, geralmente, médicos de especialidades consideradas não tão imprescindíveis como isso "logo ali" (o que é dicutível) ou que, por imprescindíveis que sejam, não dispõem, nos seus quadros, de médicos suficientes para assegurar presença física na urgência durante as 24 horas do dia. Refiro-me à Urologia, à Oftalmologia, à Psiquiatria, à Radiologia, à Gastroenterologia, à Otorrinolaringologia, à Nefrologia. Pode variar, conforme as existências de cada hospital. Foram só exemplos.
Bom. Estes médicos não são obrigados à presença física, mas devem comparecer no hospital quando solicitada a sua presença pelos colegas que lá estão. Não auferem horas extraordinárias, ganham o que foi combinado entre eles e o hospital para esse serviço, que é prestado, em parte, durante o seu horário normal, noutra parte fora dele. Mas não ganham horas extraordinárias. O que se entende, porque não são obrigados à presença física.

Posto isto, que se pretende agora? Transformar a presença física, objectiva, efectiva, dos médicos, no hospital, fora do seu horário de trabalho contratual, num regime de prevenção alternativo e digno do ideário esclavagista? Obrigar homens e mulheres, profissionais diferenciados, a pernoitar fora de casa, longe do aconchego da família (se a tiverem) ou dos seus livros, filmes e amantes (se for o caso), em nome de quê? A troco de quê? De pagamento à peça?

Eu peço a cada um dos senhores que calhar interessar-se por estas coisas e que tenha uma profissão diferente da minha, que me diga: o que pensaria se lhe propusessem isto?
"- Você, por via das dúvidas, porque pode ser preciso, vem para aqui e fica cá esta noite; doze horas, sim; e, sim, é obrigatório; sim, sabemos muito bem que isto se passa tudo fora do seu horário de trabalho, mas é assim a vida tal como ela é, a partir de agora. O senhor, em lhe chegando apenas 2 doentes durante a noite, receberá 10 euros. Em lhe chegando 20, receberá 100 euros. Se não tiver de ver nenhum doente, porque nevava muito e ninguém veio, pode sempre regressar a casa, no dia seguinte, de mãos a abanar e com uma gratificante sensação de ter cumprido o seu dever, repousando nesse catre que lhe fornecemos, atento aos ruídos que lhe chegam do exterior, duvidoso entre querer que chegue alguém - para lhe darem 5 euros - ou que o deixem em paz na sua humilhação de ser inútil."

Pensaria, certamente, que não pode ser assim. Não pensaria? Ou que, em sendo assim, não seria justo.
Espero eu que pensaria assim, mas eu engano-me bastas vezes, sobretudo à medida que me vai custando mais a acompanhar o pensamento de quem pensa por mim, para mim e para toda a gente. Como se lhes fosse sempre dentro um sábado cerebral, as sinapses já a desligarem-se para o descanso de domingo.

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