memórias de besugo
O antigo liceu, o colégio velho, está a cair.
Há anos.
De cada vez que vem aí uma ventania, uma chuvada forte, um raro nevão, espera-se que desabe. Que se esmoreça todo naquela calma fria e feia, paralela à de quem o vê todos os dias, naquele abandono alquebrado de quem já se partiu por dentro, faltando-lhe só morrer com o estrondo vetusto das memórias altas.
Fiz, ali, os três primeiros anos do liceu. Tínhamos, na altura, uma reitora. Que está velhota, muito velhota, mas ainda vive, ainda bem. Foi uma das primeiras licenciadas em matemática em Portugal. Terror da miudagem, sobretudo nas chamadas à reitoria - para tabefes por garotice - e quando espreitava da janela a ver se, naqueles Fevereiros frios, estávamos todos de blusa branca, calções e sapatilhas, por cima do corpo gelado que pedia lumes ou calores de correria.
Todos, enfim, nunca estávamos. O Jerusinho (que não se chamava assim) podia vestir fato de treino, azul escuro duma vergonha baça, de "nylon", mas todos sabíamos que ele era doente. Se não era parecia, só saltava trinta centímetros e, a seguir, quase que desmaiava de fraqueza. Mas não era, como se viu depois: era só o Jerusinho.
Agora não deve saltar muito mais, mas mesmo que saltasse a gente lembra-se dele é assim, quentinho e muito "pupilinho da senhora reitorzinha", enfeitadinho daquele seu corpinho de pequena saca de batatas murcha, minhoca protegida pelo liceu velho, que vinha à janela, o liceu inteiro que mandava, o liceu que está a cair há anos mas que, naquela altura, não.
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