Interlúdio silencioso
Apaguei esta manhã, cedinho, uma coisa que tinha escrito ontem à noite. Assinalo-o porque pode haver quem tenha reparado nisso. Duvido, mas pode sempre acontecer. E, a ser esse o improvável caso, o facto merece uma explicação.Fi-lo porque a noite é boa conselheira. Acordamos com a certeza de que, não poucas vezes, estragamos conteúdos - não necessariamente bons, mas são os nossos conteúdos- com a forma que lhes emprestamos. Sobretudo se escrevemos irritados.
Guardei o texto, no entanto. Não é grande espingarda, já o reli, mas guardei-o. E se, num dia qualquer, penetrado de irritação semelhante à de ontem, conseguir depurá-lo dos excessos formais que o atraiçoam na sua essência, ainda que pobre, publicá-lo-ei. Não porque seja grande coisa, repito, que eu sobre os meus talentos não tenho grandes ilusões: mas porque corresponde a um pensamento que mantenho, a uma opinião que me permanece, atraiçoados ambos por uma verve destemperada de que me penitencio. Não receio destemperos, nem sequer os meus. Mas consigo entender que há alturas em que, enervados, tirados do nosso sério, tendemos a estragar tudo.
Por isso apaguei, calmamente, o que tinha escrito irritadamente.
Que quem o chegou a ler (se alguém houve que o tenha lido) tome isto em consideração, respeitando-me a decisão na exacta medida que achar que eu mereço.
E que me desculpe, nesse caso, ambas as coisas: tê-lo escrito assim e tê-lo apagado assim.
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