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16.7.04

E se eu fosse deputado de uma constituinte 30 anos depois?

A lolita - essa fascinante e distorcida senhora que me chama de retorcido - acha que a hipótese de o líder do partido vencedor morrer na noite eleitoral é diferente da situação que vivemos com a ida do Barroso para a Comissão Europeia. E que pôr essa hipótese é "alterar as premissas" da discussão que a decisão do Sampaio provocou.

Embora retorcido, aceito que são situações diferentes. Que diabo, o Barroso não morreu. Mudou-se.

Aceite a diferença, em que ficamos? De acordo com a lolita, quem votou PSD votou Barroso para PM. Morrendo o Barroso, repetia-se o acto eleitoral ou não?

A questão é simples: de acordo com a Constituição, claramente o Presidente deveria, regressando do funeral, prosseguir como se nada. Ou seja, ouvidos os Partidos e tendo em atenção os resultados das eleições, indigitaria alguém (presumivelmente quem o PSD lhe indicasse) para PM.

Mas a lolita tem razão: a larga maioria das pessoas - e a lolita não é excepção - olham para as eleições legislativas como eleições para o Governo e, mais precisamente, para o PM.

O que impõe um pequeno jogo: Vamos fazer de conta que somos deputados constituintes. Sem os traumas de 1974/75 (ou seja, sem medo de personalizar o poder no Chefe do Governo, que o Salazar já arrefeceu há muito).

O que escolheríamos? De forma (muito) simplificada, as hipóteses são estas (lolita, se eu escrever alguma asneira, farás o favor de me corrigir):

Sistema Americano ou de presidencialismo puro - Votamos directamente o Chefe do Governo (que é o Presidente) e o Parlamento. Ambos (Governo e Parlamento) têm a mesma legitimidade eleitoral (directa) pelo que são poderes separados e paralelos, mas em que nenhum tem supremacia sobre o outro. O Presidente não pode dissolver o Parlamento, o Parlamento não pode destituir o Presidente, salvo em situação absolutamente excepcional de perigo para o regime ou de indignidade manifesta para o cargo. Sem nada que ver, portanto, com a política do Governo, de que o Parlamento pode discordar, mas que não tem poder para mudar (não há moções de censura nem quedas de Governos por iniciativa do Parlamento).
Ambos os orgãos têm poderes legislativos próprios, sendo que o Governo (o Presidente) tem poderes legislativos muito mais alargados do que num sistema como o nosso. Em termos de "necessidade de se entenderem", o momento fundamental é o da aprovação do Orçamento do Estado, que cabe ao Parlamento. O Presidente não está no entanto completamente desarmado face ao poder legislativo do Parlamento: se assim o entender, usa o poder de veto.

Em Portugal, o único paralelo com este tipo de regime é o que se verifica nas eleições para os orgãos municipais, em que votamos em boletins separados o parlamento e o executivo camarários.

Sistema Parlamentar - É o que se vive em Itália, em Inglaterra e o que se viveu em Portugal na Iª República. Só há um orgão eleito directamente (o Parlamento) e dele emanam os restantes (o Governo, no caso inglês; o Governo e o PR, no caso italiano e na nossa Iª República). O PR (ou o Rei, como em Inglaterra) tem funções essencialmente protocolares e pouca (ou nenhuma) influência no funcionamento do regime. Mesmo as "bombas atómicas" (demissão do Governo, dissolução do Parlamento) carecem, em princípio, do acordo do próprio orgão parlamentar, verdadeiro centro de toda a vida política e fonte da legitimidade de todos os restantes orgãos políticos do Estado.

Em Portugal, o único paralelo com este regime encontra-se nas eleições para as freguesias, em que votamos apenas para a Assembleia de freguesia e dela sai a composição da respectiva junta.

Sistema Misto - Com cambiantes várias, que pode fazê-lo pender mais para o Presidente (caso francês) ou para o Parlamento (caso português), caracteriza-se pela legitimidade eleitoral directa (igual, portanto) do Presidente da República e do Parlamento. Todavia, e no que respeita a "bombas atómicas", com supremacia do Presidente. Por exemplo, no caso português, o Presidente pode dissolver a Assembleia da República quando quiser, mas a Assembleia da República a única coisa que pode fazer é "pôr um processo" ao PR por crime cometido no âmbito do seu mandato. O PR é julgado pelo STJ (que dá, por princípio, a garantia de que o processo será judicial e não político) e, se for condenado, é então destituído. A hipótese é de tal modo académica que, no plano político, é irrelevante.

O Governo surge assim (nomeado pelo Presidente, que não é dele parte), como orgão de soberania (político) não-eleito (e por isso, no plano da dignidade constitucional, menos relevante). Depende da aprovação do seu programa na AR para vingar, e depende sobretudo dela para permanecer em funções (uma moção de censura aprovada implica necessariamente a queda do Governo).

O PR é, neste tipo de regimes, fundamentalmente uma "testemunha" do processo político. Um árbitro. O seu único "poder" advém da supremacia estatutária de que goza relativamente à AR. Evita-se a "personalização" do poder porque ele não governa. Evita-se a supremacia absoluta (no regime) dos aparelhos partidários com assento no parlamento porque ele o pode dissolver. Teoricamente, quando quiser. Na prática, fá-lo-á - por sua exclusiva decisão e até contra os partidos - apenas em situações limite.

Teoricamente, este (nosso) sistema é equilibrado. Na prática, é mais complexo do que o presidencial e não permite às pessoas escolher - directamente - quem as governa (que é a queixa que tem quem queria que o Sampaio dissolvesse a Assembleia).

O sistema parlamentar - que é o mais simples e mais "puro"- funciona bem em Inglaterra (mas é praticado com base em eleições por círculos uninominais, o que mitiga a fragmentação dos parlamentos e "personaliza" as eleições), mas foi uma péssima experiência em Portugal e continua a sê-lo em Itália. Neste País, aliás, e por falta de "contra-poderes" (do parlamento) no desenho político do Estado, acabou por ser o poder judicial a assumir essa função. O que não é, nem normal, nem saudável, porque este poder não tem (nem deve ter) legitimidade democrática/política própria.

O sistema presidencial funciona normalmente bem, e quer os USA quer o Brasil (para citar duas realidades diferentes) são disso um bom exemplo. Em condições normais proporcionam estabilidade governativa (ao darem ao Chefe do Governo legitimidade eleitoral directa e não apenas "parlamentar"). Como "contra-indicações" pode dizer-se que em caso de crise grave (entre os dois orgãos políticos) são regimes que - teoricamente - podem chegar a situações de bloqueio constitucional e a que - até que haja novas eleições - falta um "árbitro" mais as suas "bombas atómicas". Melhor, o árbitro é o povo e a "bomba atómica" é o voto, mas que - salvo catástrofe política - pode ser exercido na altura prevista e não a meio de mandatos.

A pior contra-indicação, no entanto, é a de que este regime é potencialmente perigoso quando aplicado em sociedades civis pouco fortes, pouco livres e pouco informadas. Tipo Rússia.

Concluindo: desconfio que a lolita simpatiza com o modelo presidencialista de regime. E que o besugo simpatiza com o que temos ( Não faço ideia do que pensam o Manolo e o Paco sobre isto). Eu hesito ... se o Guterres tivesse sido "eleito" PM e não houvesse PR (aliás, se PM e PR fossem a mesma coisa), ter-se-ia ele demitido a meio do mandato? E o Barroso, teria aceite este convite? (outra questão: no sistema presidencial, o candidato a PR concorre com um Vice, que obrigatoriamente o substitui em caso de vacatura do cargo. Será que o Barroso se teria candidatado com o Santana Lopes como substituto? E teria os mesmos, melhores, ou piores resultados?)

Francamente, não consigo desligar-me da "nossa" realidade" e dos nossos políticos quando penso nisto. E acho que, se me fosse dado poder constituinte, olhava primeiro à minha volta e depois é que decidia. Provavelmente, foi o que aconteceu em 1975.

Mas como vos convidei para este "jogo", acho que devo optar. E - tudo ponderado - opto pelo sistema presidencialista.

Porquê? Nem é tanto por querer a prerrogativa de escolher directamente a pessoa que tem a responsabilidade de governar.

No plano dos princípios, aliás, eu deveria bastar-me com o voto num determinado programa ideológico-político (sei do que falo. O meu voto foi sempre um voto ideológico e nunca "escolhi" - para usar a expressão da lolita - um primeiro ministro).

Sucede, porém, que só o "centrão" tem a possibilidade de escolher primeiros ministros. Eles vêm - e não há volta a dar-lhe - dos chamados "catch-all parties", ou seja, dos partidos suficientemente abrangentes e indefinidos em que cabem:

No PS:
O Guterres e o Sousa Pinto
O João Soares e o José Sócrates
O Jaime Gama e o Ferro Rodrigues
A Ana Gomes e o Jorge Sampaio
O António Costa e o Jorge Coelho

No PSD:
O Santana Lopes e o Pacheco Pereira
O Mota Amaral e o Isaltino Morais
O Dias Loureiro e a Teresa Patrício Gouveia
O Cavaco Silva e o Pinto Balsemão
O João de Deus Pinheiro e o Arménio Santos

Há de tudo, como se vê. E teoricamente, todos pensam o mesmo (todos mesmo, já que ambos os partidos se reivindicam da social-democracia)

Por isto, e só por isto, o regime presidencialista acabaria - a meu ver - por ser melhor, mais transparente e mais directo. É que eles são todos sociais-democratas, mas nenhum deles governou, governará ou governaria da mesma maneira.

Tenham ou não lido este interminável arrazoado (gralhas incluídas), queiram ou não fazer de conta que são constituintes ... bom fim de semana

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