Horas amargas
O Vilacondense publicou um texto em que refere algumas conclusões da Inspecção Geral de Saúde e da Associação dos Administradores Hospitalares sobre o trabalho médico "extraordinário", os elevados (e progressivos) custos desse trabalho para o erário público e, também, sobre a inexistência dum aumento palpável de produtividade, "apesar desse trabalho extra". No final, confessa-se revoltado por, segundo afirma, "ter percebido melhor as greves dos médicos".Não contesto os números, evidentemente, até porque não tenho outros e a fonte é, julgo eu, fidedigna. Mas, sobretudo porque é importante que os médicos participem em debates públicos sem as peias institucionais do costume (eu não morro de paixão por Ordens, já o disse várias vezes), decidi escrevinhar alguns esclarecimentos. Que não me foram pedidos, eu sei, nem sequer este escrito se destina a aborrecer o Dupond.
Importa desfazer (a mim importa-me, porque sou médico), a ideia duma classe médica corporativista, usando bata como quem usa sotaina, permanentemente a clamar pelos nossos doentinhos, mas deixando sempre no ar, às outras pessoas, a impressão de que "há qualquer coisa aqui que está mal, estes tipos querem é ganhuça...". É fundamental que se entenda que a chamada classe médica é constituída por indivíduos que têm, talvez, em comum mais coisas que o simples facto de serem médicos, podendo, ainda assim, divergir em múltiplos pontos de vista pelo mais complicado facto de serem cidadãos.
1 - As chamadas horas extraordinárias são (ou deveriam ser) isso mesmo: horas de trabalho suplementar prestadas num contexto "extraordinário", ou seja, assumindo o carácter de "excepção" ao que é "ordinário", ao que é norma, ao que estipula o contrato de trabalho. Há, até, como se sabe, pelo menos na função pública, uma limitação legal para o número de horas extraordinárias que podem ser prestadas, sendo ilegal, por exemplo, que as remunerações provindas de trabalho extraordinário ultrapassem determinada percentagem do vencimento base do trabalhador (julgo que rondará 1/3, mas não confirmei). O que implicará, também, suponho, ilegalidade na obrigatoriedade da sua prestação para lá desse mesmo limite. Mas não sou jurista, nem estes pormenores são relevantes, na sua "justeza numérica", para o caso vertente.
2 - As horas extraordinárias são propostas, como se calcula, pelas administrações, por quem manda. No caso dos Hospitais, não passará pela cabeça de ninguém (espero eu), que um médico, ou um grupo de médicos, decida, unilateralmente, desatar a trabalhar "fora de horas" por sua livre iniciativa, forçando, depois, inocentes administrações a pagar-lhe por essa labuta quase selvagem. Não. O que se passa, há muitos anos, é que o funcionamento "non-stop" dos Serviços de Urgência vem obrigando, de forma "ordinária", os médicos de algumas valências (e o comunicado da IGS refere-as, são as especialidades essenciais, de facto) a trabalho extraordinário. Isto é verdade, sobretudo, nos hospitais mais periféricos, com menor capacidade de fixação de médicos. Com quadros clínicos pequenos e semanas muito longas (têm todas 7X24 horas) é fácil perceber que assim seja.
3 - Mesmo assim, cada médico presta 12 horas semanais "normais" (ou seja, não remuneradas extraordinariamente, podendo ser diurnas ou nocturnas) no Serviço de Urgência. É o que a lei prevê. E está correcto, porque é um trabalho penoso, que não resiste a qualquer programação, desgastante. Ficam 30 horas semanais para as restantes actividades programadas, na consulta, na enfermaria, no bloco operatório, no hospital-de-dia (isto, no caso dos médicos cumprindo contrato de 42 horas semanais; aos que têm contrato de 35 horas semanais restam, apenas, 23 horas...).
4 - É que não existe, de facto, um quadro médico específico para o Serviço de Urgência. Tem havido variadíssimas discussões sobre isto, mas a verdade é que não há. Há um contingente de enfermeiros da urgência mas, ao contrário doutros países, não há um grupo de médicos da urgência. Os médicos das várias especialidades "estão de urgência", estão lá, de facto, e lá se moem, mas "não são de lá". São obrigados a "ir para lá".
5 - O gasto em horas extraordinárias com a classe médica é, sem dúvida nenhuma, elevado. Mas tudo se passa, com raríssimas excepções, no Serviço de Urgência. É lá que é preciso trabalho suplementar (e quem o solicita, repito, não são os médicos, são as necessidades, pelos vistos), é lá que é, portanto, prestado. Obviamente que esse dispêndio em horas extraordinárias não vai provocar nenhuma vantagem em termos de produtividade: não há indicadores fiáveis para esse tipo de produtividade, porque se trata dum trabalho não programado, "atende-se quem vem". É até possível conceber, sem má fé, que a produtividade mensurável possa diminuir: será que um médico que acabou de prestar um turno de 24 horas seguidas de trabalho no serviço de urgência, doze das quais extraordinárias, poderá ser menos produtivo na manhã imediatamente a seguir, retardando altas, cirurgias e consultas, por cansaço? Pois é, é possível, não estou a dizer que aconteça, mas é perfeitamente imaginável que sim.
6 - Quanto às greves dos médicos pelo (não) pagamento das horas extraordinárias, o Dupond tem alguma razão: elas são pagas, no fim do mês seguinte (não é no fim do mês em que se cumprem, vai dar no mesmo), mas há uma questão de tabelas. Este tema (que divide, também, de alguma maneira, os médicos) mereceria tratamento à parte, que este texto vai longo e, se calhar, maçudo. E ainda falta discutir a questão das "horas extraordinárias assinadas de cruz". Ficará para depois.
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