blog caliente.

7.10.03

A neura

Houve um tempo em que me era mais fácil compor a disposição. Agora já não é assim, ando a ficar assaz dependente da neura, já me não componho a preceito.
Não há nada mais nosso que a neura, como alguém já disse. É mais estranha que o spleen britânico, a neura. Tem um componente trombudo, cinzento, malcriado, birrento. A pedir miminhos, mas a rejeitá-los. Mesmo antes de oferecidos. Eu acho que em tempos li uma crónica sobre o tema, penso até que era do Miguel Esteves Cardoso. E lembro-me de achar que era uma muito boa crónica. E tenho esse texto algures, é questão de procurar. Mas hoje não. Estou com a neura.

Não há dias brilhantes, nem luminosos, nem mares azuis e profundos, se estamos assim, com a neura. E quanto ao facto de anoitecer mais cedo, a simples lembrança da próxima e "produtiva" mudança da hora me enegrece ainda mais o crepúsculo. É que já nem há crepúsculo. Ou há menos. Com a neura tudo fica mais... menos.

Hoje tentei receita antiga para esta nova neura. Quem me conhece neuras antigas (e não me abandonou, entretanto, à conta delas....) sabe que o jazz suave de Pat Metheny me embala e adoça, preparando o caminho para melhores humores. Sabe? Pois, eu também pensava que sim. Mas já não. A meio do American Garage, no carro, a neura segredava-me "desliga essa porcaria, que raio de delírio, julgas que me vences com truques antigos?" e ria-se de mim, a puta. Desculpem o palavrão, mas a aleivosia da neura é-me evidente e não costumo poupá-la a adjectivação adequada.

Desliguei o aparelho e fiz-me ao silêncio, com a neura bulindo, contente, dentro de mim. Ao enfiar o carro na garagem tencionava pegar competentemente com toda a gente. Bela rima. A mulher, os filhos. Fazer, até, alguns telefonemas de retaliação: "Está, estás bom? Olha, eu não, vai-te lixar! Tungas!"

Subi as escadas determinado. A minha neura, vencedora de mim, dava entrevistas a uma TVI qualquer dentro do meu peito.

Lixei-me. O mais velho deu-me um abraço e disse-me "ainda bem que chegaste que tenho dúvidas: uma frase afirmativa pode ser neutra? estava à tua espera, a ver se vias isso comigo...".

A minha neura, pasmada de medo, sentou-se na berma de mim. Já tinha levado um abanão, durante a tarde, dado por mão certeira de quem se preocupa. Mas tinha ficado ali de pé, dançando bêbada da emoção de me ganhar o dia. Sacana. Deixei-a ficar. Na berma.

As neuras de agora, ao contrário das antigas, não se derrotam. Cobrem-se, tapam-se, anestesiam-se, deixam-se nas bermas. Mas ficam sempre dentro de nós, à espera de qualquer falhanço do Pat Metheny. Não, não é um gajo novo para o Sporting!

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