blog caliente.

10.6.07

Restos

Na Guiné há-de ter sido duro, aquilo, quem esteve na guerra costuma dizer que foi mais duro na Guiné, mas há-de ter sido fodido em toda a parte, o que me leva a poder dizer, e não estive em guerra nenhuma, que na Guiné há-de ter sido duro, aquilo.

O Zé Alferes (se se chama assim? chama, sim, é o Zé Alferes) esteve na Guiné e era, como está bom de ver, alferes miliciano; e parece que um dia, ou uma noite, o tempo é muito redondo, um soldado teve uma chatice qualquer que meteu explosões nele, ou com ele, ou apesar dele, e ele, o soldado, apesar dos "apesares" e independentemente de ser dia ou de ser noite, lá ficou sem as duas pernas e sem as partes pudendas, que se lhe explodiram ou que, pelo menos, dele se apartaram.

O Zé Alferes e outros alferes pagaram a viagem de regresso do soldado, para a viagem ser mais rápida, ou mais confortável, ou para serem melhor acondicionadas as partes restantes do soldado a quem pagaram o regresso, que houve peças que não regressaram com o dono: coisas de azares e de minas. De mineiros ternos.

E parece também que o soldado tinha mulher e uma filha. Não parece, tinha mesmo. E foi melhor assim, aparentemente, porque também parece claro que, se já não as tivesse, já não as teria. Ou não.
Tinha e pronto.
Seria um tinhoso. Como se verá.

Um ano depois, o Zé Alferes regressou, deixou a Guiné e veio de barco, mar adentro. Vinha tão bem de vir que nem avisou a família.

Nunca escrevera à mãe, aliás.

"Para quê, homem? para lhe dizer mentiras ou para lhe dizer ó Mãe, sabes?, matei ontem dois e ia-me fodendo ao mesmo tempo que os fodia a eles, mas por acaso ainda não me fodi, olha, Mãe, morreu o Seixas, o de Sanhoane, mas fica bem, Mãe, fica bem, Mãe, ficas?, beijos ao pai e aos meus irmãos, eles que evitem crescer muito, que fiquem pequenos, que se cuidem, que eles ainda não mandam para aqui crianças, e olha, olha!, mando uma flor para as minhas irmãs, que são meninas e meninas e meninas, e, para ti, Mãe, olha, Mãe, Tu pega-me neste medo e aquece-mo no Teu coração, coração, no Teu coração, eu dava-Te o meu, não podia, pá, não podia escrever-lhe estas merdas, pois não?".
Não.

Seja como for, o Zé Alferes tinha lá, no Porto, acho que em Lisboa, no porto de lisboa que nos acontece sempre que vimos de longe, o soldado à espera. Qual soldado? Não ledes nada. Qual soldado? O sem pernas e sem partes, o hemi-soldado das explosões, montado em cadeira de rodas empurrada pela mulher, a filha ao colo. Dele. E penteado.
E o soldado levava, para depois do abraço, um envelope, uma merda onde se metem muitas merdas, já meti tanta merda em envelopes endereçados a merda tão porca, mas neste caso não, estava lá metido, pelo soldado, o dinheiro que o soldado achava que devia ao Zé Alferes, pela viagem de regresso que o Zé Alferes ajudara a pagar, viagem de ternura em "turística para estropiados".

O Zé Alferes teve de aceitar o envelope, pesava quase cinco contos, mas teve também de comprar uma promessa do soldado. O animal queria ir a Fátima todos os anos, num dia qualquer que não me recordo agora. Pagar uma promessa.
O Zé Alferes pensou "mas que promessa? este caralho ficou sem pernas, sem colhões, sente-se grato por quê, e, mais do que isso, a Quem?", mas calou-se. Disse que sim.

Decidiram dividir a tarefa de levar o soldado a Fátima por quatro. Pelos quatro, que tinham sido quatro alferes a gastar soldo para repatriar o soldado, o Zé era só um dos Alferes, iria um em cada ano, combinou-se logo: "no primeiro ano levo-te eu, vou-te buscar e vou contigo", o Zé Alferes a comandar as pequenas tropas do regresso, as tropas parecem sempre mais pequenas no regresso, a não ser nos pesadelos, aí devem crescer mais, devem parecer-se com o medo que as Mães não podem saber, mas isso agora não interessa.

E foi buscá-lo e levou-o, no primeiro ano. Levou-o mas rabujando sempre que "este caralho vai a Fátima agradecer o quê, foda-se?, agradecer o quê?", naquela surdina de condutor que põe o rádio do carro na antena 2 para não apontar o carro para uma ribanceira, ou para o apontar, nunca se sabe muito destas sintonias.
No segundo ano levou-o também, que o alferes de turno não podia, tinha merdas dele, que desculpassem.
No terceiro, porque mais nenhum alferes se lembrava já da farda, e é engraçado que as fardas são importantes para as promessas, mas isso é outra conversa, também o levou o Zé. Tinha de ser, ele queria ir, ia-se. O Zé Alferes já tinha aquela data reservada para o soldado sem partes de sobra, e a data sobrava-lhe. Ou faltava-lhe, ele nunca disse nada sobre isto de sobras e de faltas: coisas de despensa. Dispensáveis.

No quarto ano telefonou a mulher do soldado, ao Zé Alferes, a dizer que já não era preciso. O soldado tinha-se matado, pouco tempo depois da terceira visita a Fátima. Um tiro nos cornos.

Pelos vistos, o soldado ia a Fátima pedir umas pernas e uns colhões novos a Nossa Senhora. E Nossa Senhora, valha-nos Deus, arranjar pernas ainda vá. Colhões, duvido, valha-nos Santa Lavoura e a Decência. E, mesmo que Nossa Senhora andasse a ponderar o caso, que caralho, uns colhões são coisa para sessenta lustros, há gente apressada!

O Zé Alferes ainda hoje, mais de trinta anos depois, proclama baixo e espumando-se da sua razão, que mais valia o soldado ter morrido logo: "morria na guerra, não percebes?, ficava logo ali, escusava a filha de se habituar a ele para depois descobrir que o resto do pai não era nada, ou era, mas era só um resto dele, um resto que não chegava para ninguém."

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