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27.4.07

Quase que mas

Quase todos nos entristecemos perante uma senhora negra e judia, desempregada, de vinte e oitos anos, que acabou de perder a filha mais velha, de treze anos, com leucemia aguda, por não poder pagar os tratamentos nos EUA.
Certo?
Certo. Quase todos. Eu disse "quase" todos. A organização do mundo baseia-se no "quase". E no "mas", mas o "mas" era mais ali abaixo.

Vamos ver agora como é a organização do mundo, em rabiscos? Vamos.
É que alguns de nós não nos entristecemos.

O Rogério diz que não tem de se entristecer, porque conheceu um homem branco e semi-católico, que era jovem agricultor desde os trinta e cinco anos, e que tinha sete filhos - todos rapazes e dados à higiene -, que feneceu de politraumatismos por via de se lhe ter virado um tractor às cinco da manhã, que se tinha levantado cedo "e que tão cedo se pôs". E que, por isso, "não me venham falar de pretas e de glóbulos brancos".

A Palmira afirma-se possuída dum afã de sensibilidade: que sim, que se sente muitíssimo tocada, mas que "também há muita miséria nos bairros de lata!" e que isso é que a faz chorar imenso, que até nem dorme bem desde anteontem.

A Isabel, que é uma mulher que já leu umas coisas que nem o autor leria se fossem escritas por outra pessoa qualquer - isto é verdade! -, tem ideia dissemelhante das dos outros dois. Resolve introduzir aqui a componente "cultural". Sendo presentemente uma educadora em ânsias de colocação, Isabel presume que tudo se deve à falta dela, Isabel, isto "primas", e ao défice de educação e à carência de outros subsistemas quejandos da formatação do carácter. Isabel não é mais imbecil do que Rogério e Palmira, mas é mais nova. Isto é grave, porque há coisas que tendem a piorar com o envelhecimento, como é o caso da estupidez, do tesão e da bronquite crónica.

O Thomaz e o Francisco, em conversa amena, já decidiram: "que pena da preta e da filha!, mas que pena!". E entretiveram-se, até, no "Chez Maman", durante sete minutos, a imaginar um mundo em que essas coisas de desgraças dos pobres não acontecessem, tendo mudado de assunto porque Thomaz e Francisco têm verdadeiros problemas para resolver, nomeadamente quem vai negociar com o Ramires Tamboril "aquilo do Xarroco".

O Rafael e a Clara, que partilham "A Bola" com o Manuel (na varanda das traseiras, ao sábado à tarde), pressentem no drama da mulher preta uma leucemia que os mói. Mas vai jogar o Benfica, que se foda a Taça. E a Clara, que é de Bragança, vai mais longe: "que a não tivesse, filha minha há-de ser perfeitinha!", afirma ela, a passadeira dos olhos toda derramada no Manuel, que pede "mais uma mine, ó cunhada, fáxavore!"

Torres e Eleutério, sentados diante de Sófocles - que lê o diário do governo - , sufocam.
"- Está calor!", brada Torres.
" - Já vi pior...", sussurra Eleutério.

Sófocles hesita entre as mamas de Isabel e os sete filhos de Rogério. Opta, duvidoso, pelo leque. "Está pouco calor, mas o leque é branco, foda-se, lembra-me isso do caralho dos leucócitos, liguem antes o ar condicionado! No meias tintas, dezassete graus!".

E até consta que foi a preta judia, órfã de filha e de dinheiro para a manter, que se deslocou da América a regular a aparelhagem sofisticada ao gosto do senhor, pedindo desculpa por não conseguir deter a medida exacta e universal do sofrimento.
Tanto que se dedicou a corrigir os outros sofrimentos, mais legítimos. Mais de suadoiro cevado.

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