o pequeno conto do peito
Ainda não sou de repetir mecanicamente as coisas, nem a minha antiga relação com o movimento circular do tempo me impõe que as repita assim, só tique-taque: cada dia nosso é novo, por muito triste e velho que nos chegue ao contador.
Repito-as, às coisas, portanto, apenas porque quero: não porque elas se me imponham à lalia.
Todos os Natais me vêm trazer a casa, ou então levam-mas ao consultório, coisas bonitas. São coisas simples, geralmente; às vezes livros, que eu também tenho doentes que me lêem - mas são sempre muito bonitas.
Estou a escrever isto, confesso, com uma impressão no peito; mas é coisa pequena, uma daquelas pequenas dores que sabemos que não nos vão matar. Não passa daquela nossa pequena dor de inúteis que nos agarramos à nossa pequena utilidade utilitária e nos comovemos com ela, como se ela valesse alguma coisa fora do nosso próprio peito, ou como se ela ganhasse algum sentido ou valor especial no peito dos outros, só por também a termos, também a sentirmos, adoçada.
Daqui, donde vos conto isto, à minha volta, espalhados conforme me foram chegando, tenho quase uma centena de embrulhinhos e doutras coisas que me deram.
São oferendas lindas de doentes meus, doentes minhas, gente que não me pertence e a quem nada devo, creio eu - para isto fazer sentido, e eu quero que faça -, senão este pequeno conto tosco, em que lhes agradeço, de forma mais silenciosa do que se fosse segredada, terem de mim ideia de ser eu um amigo que está sempre que pode, um homem fraco que, sendo de longe, tenta estar sempre por perto e, em não estando, possivelmente, foi porque não pôde, mesmo que - se calhar - tivesse podido: há purgatórios tardios, certeiros, duradouros, autênticos limbos da memória, que nos sussurram muitas vezes que "se calhar, tinhas podido".
Tenho, à minha volta, o presépio pobre que consigo ter, não tenho outro.
Nem este tenho. Nem sequer este, que me deram, é meu. Só é meu porque aqui está e mo trouxeram.
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