Do medo
Quando, no outro dia, o meu filho mais velho se embrenhou nas diferenças de fundo entre o multiculturalismo e o etnocentrismo, acabámos a falar dos chineses e do seu modo de vida. Assentámos que a nossa referência ainda é a dignidade humana e que não pode haver tolerância acrescida para os intolerantes. Até porque eles, por autodefinição magnífica, a não querem nem cultivam.
Abordámos a mão de obra barata, as legiões de desempregados e a sua pressão indigna sobre a liberdade de quem, por acaso, tem trabalho; porque há sempre, nos cortelhos e à entrada deles, quem tenha, da lavagem que lhe atiram, desdenhosa, uma noção unicamente "alimentar". Falámos da livre concorrência e de como o belo substantivo "livre" se pode transformar, facilmente, num adjectivo de merda, bastando colocá-lo qualificando um esterco qualquer de manhoso, enfeitando-o, em lugar de o deixarmos sozinho e esbelto na sua altivez de valor absoluto.
Não falámos, porque não me lembrei, do apedrejamento de mulheres por adultério ou por outra coisa qualquer, como se faz em países muçulmanos. Nem nas execuções públicas, nos cortes de mãos na Arábia Saudita e noutros países islâmicos. Não falámos de nada disso. Nem vamos falar tão cedo.
Hoje, por causa das caricaturas, o rapaz perguntou-me: "Que vem a ser isto?". E eu não lhe respondi, disse-lhe que era mais uma chatice.
A ele não lhe disse. Nem ele é responsável pelo que eu digo, pobre rapaz que está apenas a crescer. Mas digo aqui.
"Meu filho, isto são os filhos da puta, outra vez".
A mulher da fotografia não é. A mulher da fotografia (e muitos outros homens e mulheres, muçulmanos, judeus, budistas, católicos e protestantes, no mundo inteiro) não é filha da puta: aquela mulher é mais um festim macabro dos filhos da puta que só lhe deram um livro para ler, como se lá estivesse tudo dentro e, fora dele, não houvesse mais nada. E, coitada dela, às tantas nem apedrejada até à morte desconfiará que há. Basta ver a cara dela: sepultada ali, na ignomínia do medo, não parece capaz de descobertas.
E são sempre mais, os cães raivosos. Seja porque são mesmo mais ou porque fazem mais barulho enquanto dilaceram qualquer tentativa de ternura.
<< Home