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8.5.05

A cidadania longínqua

As vizinhas sabiam dos maus tratos, mas não moveram uma palha que fosse para os impedir. Iam alimentando, à porta do bloco de betão onde todos viviam, a conversinha pequena sobre as sovas diárias inflingidas a uma pequenina criatura de cinco anos, ao longo dos cinco anos que durou a sua vida.
Tornaram à conversinha pequena, no funeral. Todas sabiam de pormenores macabros, cada uma sabia de um pormenor diferente. E alongavam-se, as conversas, as perguntas. A sede de morbidez. Todas e todos tão mal tratados como a pequenina que morreu às mãos cruéis da negritude insuportável de um bairro onde moram cidadãos eleitores que não sabem de denúncias. E que, se soubessem, não acreditavam em denúncias deixadas em locais estranhos, distantes, onde são apenas os esquecidos. Mais do que tudo: são vidas sem vontades. Muito menos de denúncias.
Todos e todas culpados de coisa nenhuma, sem defesa contra maus tratos passados, presentes ou futuros. Acontecem sempre. Hão-de tornar a acontecer, perante a passividade soturna de quem não tem consciência de si. A consciência que, se existisse, podia ter impedido a morte da pequenina de cinco anos que, se tivesse sobrevivido, calaria mais tarde, sem saber e sem vontade, os maus tratos de outra pequenina na iminência da morte.

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