blog caliente.

28.4.04

DIÁRIO: OU COMO A AUTO-ESTIMA ANDA CÁ POR BAIXO...

Perdoem-me os meus corajosos compañeros que lerem isto. É uma espécie de diário - uma especie de "olhem para mim" "ouçam o que tenho para vos dizer". Num blog escorreito, bem escrito, alinhado, saudável, apetece-me quebrar o ciclo e falar simplesmente de nada. Ou como a vida pode ser banal, ás vezes mesmo muito deprimente. Mesmo para quem trabalha numa zona hospitalar pouco ou nada dada a banalidades ou monotonias. Mas que, por vezes, nos deixa exaustos, vazios de ideias, de vontade, de humor, de tudo... Hoje não me apetece escrever bem, não me apetece ter graça, muito menos chatear o besugo (fez noite) ou provocar a lolita. Hoje apetece dizer - "raios parta isto tudo, quero férias". É verdade, besugo, rendo-me: preciso de férias. Muitas ! Não me apetece pensar:
- Faço zap constante na TV.
- Já não me importa que os meus enfermeiros sintonizem a TVI - tento demonstrar científicamente que os meus doentes pioram nessas alturas: há mais agitação psicomotora, mais dificuldade em ajustar terapêuticas, baixam as diureses, etc...
- Li ontem o jornal O Jogo.
- Encolhi os ombros a uma provoção futebolística.
- Nem me interessei discutir mais a não inclusão do Dr J Loureiro nas listas do PSD para o PE - apenas um dos muitos péssimos momentos da política portuguesa - é melhor assim, pensei eu !
Porquê tudo isto ? Na verdade ando a atravessar um mau momento. Daqueles do tipo é TMC (tudo muito complicado). Os motivos: toneladas de desilusão, falta de concretização de muitas expectativas, alguma raiva, sentimento de injustiça (para mim avassalador), enfim como diria uma teenager de esquerda "Sei lá, tás-a-ver, ouve lá pá, não sei..." .

1. Dos que conheço sou o único médico que, como assistente de um quadro médico hospitalar, e responsável de qualquer coisa, faz um exercício saudável de análise retroespectiva, geralmente considerada exaustiva, do que foi o ano anterior em termos de movimento assistencial de doentes, patologias, diagnósticos, evolução, morbilidades, mortalidades, enfim tudo o que diz respeito á nossa actividade clinica. Incluo nessa análise, outros parametros: gestão, infecção, aspectos de organização, actividade científica realizada, etc - o que se chama de Relatório Anual de Actividades. Não vos direi qual a sua importância, porque é obvia - pedagogia, discussão crítica, trocas de ideias, sugestões, etc. Este ano mais uma vez, o único a fazê-lo. O Anormal ! Convocou-se a reunião com a devida antecedência, mas só 1/2 do staff o leu. A discussão não aconteceu. Não pude manolo, estive de urgência, de fim-de-semana, o meu PC não aceitou o teu CD onde gravas-te o relatório, desculpa lá pá que me esqueci, já agora queria levantar uma questão pertinente - quantos doentes tivemos o ano passado ?...
Não aguentei, agradeci os préstimos de todos e ao fim de 50 minutos encerrei uma reunião que em anos anteriores durava toda a tarde!

2. Antes da dita reunião parti um dos dentes da "frente" e de "cima". Mais tarde (ao olhar o espelho) percebi que tive sorte em não ter sido agredido pelos colegas. Dentes: a minha desgraça total. Andei durante anos a aguentar a transformação da minha boca, numa beirute em miniatura. Na minha meninice tive um dentista que não conhecia anestésicos, e que dizia: os transmontanos não são cagões ! Mais tarde, já muito tarde, quando não conseguia sorrir e nem falar sem pulverizar alguem, uma amiga atenta puxou-me as orelhas. Encontrei uma santa dentista que me recebeu a primeira vez sem recriminações (eu já era superespecialista), cuidou de mim, limpou-me as chagas, desinfectou-me as feridas, lavou-me os pés. Entreguei a minha vida nas suas mãos. Foi no Porto, nunca a esquecerei ! Deu-me uma boca nova, um look mais apetecivel, tornou-me mais decente aos olhos dos outros - sobretudo dos doentes. Agora o dente partido, barba por fazer, relatório - marimbaram-se para ele, TMC... Lá fui eu á dentista da família em Trás-os-Montes profundo. Esperava outro qualquer Dr J Mengele. Mas vá lá, correu bem: uma gengivectomia, muito sangue (já precisava de uma flebotomia, pois tinha um hematócrito alto por ser ex-fumador - até me fez bem), fragmentos de dente, dores ligeiras de tipo lancinante e, ao fim de 90 longos minutos, nem queria acreditar no magnífico dente reluzente, produto perfeito daquelas mãos de fada ! Levei não-sei-quantas-anestesias, suei a bom suar, hálito gástrico num ai jesus (aquela gente dos dentistas tem cá uma resistência - ao NBQ - nuclear biológica e quimica), mas saí de lá eufórico. De repente tudo azul, óptimo, excelente, magnífico, cool...

3. Avaria no automóvel na viagem de regresso !

4. Um-colega-que-me-deve-tudo telefona-me a dizer disparates. Lá se vai a euforia do dente. Arrelio-me quase a sério. Liguei a TVI de novo. A minha mulher manda-me dar uma volta. Fui para o Porto.

5. Reunião preparatória de um Congresso médico cá para os nossos lados: ó manolo deixa-te de merdas, isto por aqui está de rastos, as SA estão a dar cabo de tudo, não estás a ver ? - Mas os médicos ? pergunto eu. - Tu é que és de bom tempo, está tudo a marimbar-se, cada um faz o seu e ponto final. Regresso a casa ! A minha vizinha pergunta-me se é verdade que o doente X da enfermaria Y tem uma certa doença !

6. Reunião de condomínio: quase tudo quadros da UTAD. Ninguém quer saber se o portão da garagem está aberto ou fechado (já fomos assaltados), se o ruido noturno quase ensurdecedor da pizzaria do rés-do-chão incomoda ou não, se a vizinha esquizoide do lado, gosta de punir todos os condóminos com coisas mirabolantes: papeis nos interruptores para não desligarem, avaria intencional no portão da garagem (tem o seu espaço fechado ilegalmente) para estar sempre aberto talvez para os ladrões roubarem os vizinhos, abre as janelas das zonas comuns, quando está vento e chuva para chatear... ameaça verbalmente as mulheres, escreve papeis de tipo aviso (esta casa não vende móveis por ex) num momento em que alguem deixou uma mesa na zona comum da garagem. Ao fim de meia hora, acabou a reunião onde não se discutiu nem decidiu nada. Que mal fiz eu a Deus ?

7. Tento dormir e não consigo. Escrevo neste blog. Já sei que vou apanhar das boas, quando o besugo despertar da sua noite de urgência. Este blog tem, certamente, gente tolerante ! Menos no futebol...

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