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25.4.04

25 de Abril

O dia amanheceu enevoado, mas havia sol entre as nuvens. Eu tinha treze anos e andava no liceu, no quarto ano. Corresponde ao oitavo, nos nossos dias.

O João Correia já andava no quinto e era de família informada. No intervalo duma aula matinal, o João estava numa roda de amigos, a falar. Estava lá o Duarte, que nunca mais vi, também. Não sei bem porquê fui até lá, com o Zé Póvoa e o Zé Guerra, acho eu. O Guerra já morreu, bom amigo, muito novo.

Soubemos da Revolução ali, no intervalo. Tínhamos sabido da "intentona" das Caldas, no mês anterior, e percebemos ali algumas coisas. Muito poucas. Mas sentia-se mudança séria e via-se muita luz nos olhos dos mais velhos.

O intervalo acabou. Lembro-me de ter tido uma aula de Física e outra de Ginástica, com professores muito novos, um era Rui, outro não me lembro, teriam vinte e poucos anos. Esfregavam as mãos de contentes e a gente percebia porquê, eles percebiam que a guerra ia acabar, que já não iam, percebiam outras coisas.

Lisboa era muito longe, mas sabíamos que aquilo também estava a ser connosco, aqui no Douro. Que nos dizia respeito. A reitora, coitada, desdobrava-se em telefonemas para a filha, em Lisboa, a ver se estava tudo bem. Estava, pelos vistos. Para ela piorou, depois, pagou a severidade reitora de gostar de punir catraios à lambada, com escritos nas paredes do liceu a mandá-la para a rua. Acabou por ir.

Já em casa, lembro-me de ter visto filmes e desenhos animados na televisão, a tarde inteira. Na RTP2. Na 1, havia música estranha, bonita, homens de barba a cantar coisas que eu conhecia de ouvir no gravador de fita do meu padrinho, que é cego. Ouvíamos sempre meio em segredo, eu julgava que era mania dele, os cegos são estranhos, às vezes.

O meu Pai disse-me, à noite, muito sério mas com os olhos a rir, que (se calhar) eu já não precisaria de ir para a guerra. E que ia haver liberdade. Eu fiquei contente. Nunca me tinha preocupado muito com isso da guerra, embora soubesse que a havia e que lá iria parar, um dia. Falava-se nisso em casa. Mas, ver o meu Pai com os olhos a rir, alegrou-me. Eram olhos diferentes dos do dia em que me ralhara, anos antes, angustiado, por eu me ter atravessado a declarar, na cadeira do barbeiro, que "Salazar é burro, diz o meu Pai". A liberdade que ia haver devia acabar-lhe com a angústia do que o filho podia dizer.
Não foi muito mais do que isto. O resto os senhores já sabem. Muito melhor do que eu.

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