blog caliente.

23.1.04

Coisas muito simples e antigas

Um homem velho entou na casa mortuária, a tremer. Não era só do frio, percebi depois, que a idade acaba por nos fazer tremer, por variadas razões. Conhecia-o de vista, aqui da parte alta da cidade velha.
Vinha de fato, sem agasalho conveniente. Porte bonito, grisalho do tempo.
Depois de passar uns momentos com o meu Pai e com os outros dirigiu-se a mim. Disse-me coisas simples. Que era a vida. Que lá íamos todos. Que era muito amigo do Z.C. e que o Z.C. também era muito amigo dele e lhe dera, uma vez, há muitos anos, um rádio. Que a mãe do Z.C. ("que já lá está") e a irmã, a S., eram, também, muito boas pessoas. Eu disse que já sabia, claro... Ele disse que eu não sabia, não senhor. Contou-me que quando moravam na quinta de Alentém, há sessenta anos, lhe tinham matado a fome muitas vezes. E que ele, rapazinho ainda, lhes pedia um caldo e eles, sim senhor, lhe davam um caldo, mas só depois de o obrigar a comer batatas e sardinhas. E que levava para casa, ainda, bons nacos do que havia.
Disse-me que "pessoas assim só podiam ser comunistas, e eram, que até foram perseguidos, mas hoje nem se pode dizer". Eu perguntei-lhe se ele também era comunista, já um bocado comovido, e ele respondeu que sim, que lá ia sempre "deitar na foice". Percebi que o faz por uma religião que não aprendeu no catecismo normal das caridades convencionais: associou apenas, como todos fazemos, a bondade e a solidariedade a uma bandeira que, não as representando em exclusividade, as contém também.
Um idealista velho, de província, a tremer de frio e de doença, a fazer-me chorar à conta do caraças dum rádio antigo e dumas couves na sopa colectiva daquela altura.

View blog authority