Capicua do fim
Ando com falta de ar. Ou melhor, o ar não me falta, acontece é que o ar que tenho não me chega, parece que não me dá aquela saciedade plena de quando respirava melhor. Deve, talvez, ser do fumo dos cigarros. Mas pode ser, também, por andar a respirar duma forma mais consciente, menos leviana. Sim, que eu respirava levianamente, como toda a gente que respira desde cedo. Quando se respira levianamente, não monitorizamos os nossos movimentos respiratórios, inalamos e exalamos com a mesma profundidade inconsciente e redentora: o ar lá vai, lá cumpre silenciosa e eficazmente, quase anonimamente, o seu papel purificador. A não ser em momentos de esforço, mas mesmo nessas alturas, a verdade é que temos, geralmente, mais (e, se calhar, melhor) em que pensar. A coisa agrava-se é quando começamos a vigiar-nos de tão perto que nos abafamos. Isto não se resolve com máscaras de oxigénio a 24 ou a 28 por cento, nem com nebulizadores plenos de salbutamol. Também não se resolve com ansiolíticos, nem antidepressivos. Um abraço dos filhos ajuda... mas eles, depois, vão outra vez brincar e a gente fica na mesma agonia mansa, estuporosa, bovina, triste. Do que eu preciso mesmo é dum dia cinzento na montanha, daqueles dias em que a gente fica só, enevoadamente, com os nossos pensamentos, a ouvir músicas que nos fazem deslizar pelos entrefolhos da gelatina encefálica melhores lembranças, mais belos projectos, menos amargura e algum restinho de beleza... Mesmo que os projectos se revelem engenharias impossíveis para tão pouca gelatina, e que a beleza esteja sempre lá e a gente fique triste por não poder metê-la toda dentro do peito, há-de ficar sempre uma certa doçura. Quanto mais não seja por termos ficado ali um bocadito esquecidos de nós enquanto nos apalpamos por dentro, esquecidos de respirar, mas respirando mesmo assim. Leviana e satisfatoriamente. Descer a encosta é que é pior.
Escrevi isto há cinco anos.
Estou hoje muito pior. Já não creio nas virtudes da montanha em dias cinzentos, nem em música nenhuma. Sei da beleza, ainda, mas não me entrou nenhuma dentro que quisesse ficar. Nem doçura alguma se quedou, de resto. Nenhuma.
É muito difícil esquecermo-nos de nós, mesmo querendo muito, desesperadamente querendo isso, esquecermo-nos de nós, até por já não nos suportarmos, quando estamos com muitas dores. Com dores demais para subir, para ficar, para descer.
"És como os outros, cala-te, não tentes manipular, não passas dum egoísta auto-centrado, só magoas, só feres, só agrides, ninguém pode ajudar-te sem seres tu, bem vindo à vida real".
Perceber isto foi-me difícil, que sou bastante burro. Nem sequer percebi, ainda. Limito-me a aceitá-lo e a dizer-me adeus, a despedir-me de mim já de mais longe, mais de tão longe do que pensei que viesse a ser possível, com bastante medo, o medo do costume mas que nunca pensei que fosse tanto, mas agora sólido, um medo tão sólido que quem quisesse, se quisesse mesmo, o tocaria.
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