blog caliente.

11.7.06

E que os suores sejam sempre quentes

E, se me fui conforme vim, é conforme me fui que regresso: remexendo no baú.
Não faz sentido, para mim não faz, que seja doutra forma. Não me vou embora bem, nunca fui, para que havia de me ir agora?



Decidir de nós

"Já vai nos setenta, como o meu pai, e é meu amigo, pormenor importante que me dispensa de rigores científicos. E está a morrer.
A diabetes, essa assassina lenta e silenciosa, proporcionou-lhe, agora, uma perna gangrenada. Já lhe vai no joelho, a morte, numa subida ritmada que os antibióticos não controlam.
O último ano, costuma ele dizer, não passou; passou-o ele. Quase cego, com dores dispersas, ameaçado de diálise. Impedido de todos os prazeres. A dieta, os remédios, a quase total dependência dos amigos para qualquer deslocação. A conversa no café transformada em ritual de trasladação, “quem me leva, quem me vai buscar?”. Cada vez mais amargo, mais sarcástico, mais achincalhado naquela impotência enrodilhada da doença que se entranha.

Agora a gangrena. Com ela, a paragem dos rins, o potássio a alarmar-nos a todos. A diabetes à solta, praga desvairada em campo de cultivo desleixado.
O internamento, o sofrimento e a fraqueza não lhe retiraram lucidez. Desde sempre agnóstico, órfão de republicanos convictos e perseguidos, comunista desde que se lembra (e tramado por isso, em tempos antigos), enxotou o capelão mal o pressentiu. Mau sinal. E coitado do padre, tão triste.

Disseram-lhe o que havia a fazer: diálise (as sessões necessárias para lhe equilibrar o meio interno), seguida de amputação, o mais rapidamente possível.
Que não, que não queria, que o deixassem em paz. A morte, encarada como o fim de tudo, impressiona mais quando o fim está mesmo ali, do que quando se discute, no café.

Quando lá cheguei estava a preparar-se para assinar o termo de recusa de qualquer tratamento, apelidando de “raça maldita” tudo o que mexia. Os meus colegas, desesperados, procuravam mostrar-lhe a morte inevitável, a breve prazo, numa tentativa vã de o dissuadir. Coitados de nós. Falhamos tanto, quando não conhecemos. Eles não o conheciam. Agitar-lhe o fantasma da morte era acenar-lhe com a paz.
Eu, que o conheço do tempo dos meus primeiros calções, percebi que o seu único receio era perder a autoridade que, enquanto lúcido, sabia que tinha sobre o seu destino. O medo de perder as rédeas, algures no percurso que lhe falta, caso a lucidez lhe escape. Falei com ele e ele comigo, porque somos amigos.

Fez hoje a diálise e tudo se prepara para a amputação. Prometi-lhe, apenas, e ficou lavrado em papel, uma coisa singela que o sossegou: não será submetido, em qualquer circunstância, a manobras de reanimação, nem às medidas invasivas que chamamos de “suporte avançado”. Não as quer.

Afinal era fácil. Queria decidir de si, enquanto podia. E nós estávamos a perceber tudo mal. Ele não quer morrer, pelo contrário. Mas, se tiver de ser, quer respeito. Há-de tê-lo.
Para já, está vivo e ficou a dormitar. Disseram-me que se cansou, na diálise, o que me fez sorrir. É que, engenhocas desde sempre, passou a sessão a perguntar às enfermeiras o funcionamento “daquela geringonça do inferno”.


E já morreu, vai fazer dois anos no fim do Outono que lhe assinei a guia.

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