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30.12.05

Má quadra (2)

Fazia sempre as leituras, na missa de domingo. Voz possante nos pulsos grossos, enchia a Matriz de palavras anchas, como se dissesse poemas, coisas que ele próprio tivesse escrito, ou que tivessem sido escritas por quem ele amava. E assim era, no fundo: lia amorosamente palavras que sentia amorosas, por duras que fossem.

Começou por querer ser médico, depois (ou antes?) padre, mas o Deus que amava mais que tudo destinou-lhe um uniforme - que trazia, apensa, vida militar. Temperou o carácter rijo e disciplinado em S. Miguel, cinquenta anos antes de eu arribar à mesma ilha, vestido de uniforme diferente - mas que lhe era, também, querido e respeitável - e bem menos provido de força e crença.

Depois disso, a vida foi-lhe escorrendo conforme costuma escorrer, em a deixando, umas vezes melhor, outras pior. Morreram-lhe duas filhas, as duas mais velhas, ainda adolescentes, num acidente triste, que marcou a minha infância tenra com o primeiro sangue fundo. Ganhou coragem nos dias que passavam e na força que já tinha. Espalhou bondade e dureza conforme lhe pareceu que devia, como faz qualquer homem em tempo de decisões.

Para o fim, esmoreceu-lhe o corpo e começou a irritar-se com as limitações que a carcaça lhe impunha à determinação. Foi deixando claro, progressivamente, involutivamente, a toda a gente, que já não era o mesmo. Por outra, era o mesmo, de facto: mas menos, como costuma acontecer a todas as pujanças, com o passar do tempo.

A mulher morreu-lhe, há nove dias. Não teve disso ciência porque o Deus dele, que tanto amava, se esmerou na sua misericórdia por ambos: tirou-o de casa, para o hospital, ele próprio muito mal, algumas horas antes de a chamar a si. Ninguém lhe disse que enviuvara, todos esperando o momento certo. Tontos, que nunca aprenderemos que certeza nenhuma se aplica a momento nenhum.
A consoada foi mais triste, mas fez-se. Fez-se, como se fazem as coisas todas que têm de se fazer: fazendo-as. Pareceu melhorar, anteontem, conseguia falar sem grande pieira, perguntou por ela; e nós dissemos-lhe que estava bem, à espera dele, que talvez passassem o ano juntos, se tudo corresse bem, e ia correr.

Como se nos lesse na escolha cautelosa das palavras a verdade que lhe escondíamos, feitio dum raio, decidiu piorar. Como se adivinhasse, mesmo, que aliviávamos o luto, nas roupas, antes de o ir ver, para que não soubesse.
Está, neste momento em que escrevo de longe, porque o cuidava convalescente e pretendi para os meus um pouco de paz e de riso despreocupado, a preparar-se para ir ter com ela. Como se ela o chamasse, como se ele a escutasse, como se o Deus que ambos tanto amaram os quisesse juntos para se desejarem, mutuamente e aconchegados, um Ano Bom.

Adeus, Tio-Avô Manuel, último tecto do meu Pai antes do Céu. E Bom Ano para todos os homens e mulheres de boa vontade.

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