A romântica e o cínico
Ao fim da tarde, o cansaço vence-nos e a vontade de dispersão aumenta. Assim sucedeu que, embora atarefada, me detive sem resistências numa conversa assaz tentadora de dois colegas de trabalho que me interromperam a escrita para me convidarem a dar opinião sobre o tema que debatiam: o casamento. Devo dizer, porque é importante para a compreensão do contexto da conversa, que, dos dois, ela é casada - a romântica; ele, um solteirão impenitente, descrente de matrimónios e de outras ligações mais ou menos permanentes que, eventualmente, lhe cortem as asas - o cínico. A romântica lamentava, algo desiludida, que os homens são felizes desde que tenham cervejas e futebol. Ele retorquia ser inevitável que o casamento faça esmorecer a paixão e que é possível identificar um casal nesse letárgico estado quando, num restaurante, se observa, na mesa ao lado, o homem a comentar que o cozido está bom e a mulher a responder "sim, está", depois de terem estado calados olhando bovinamente o tecto durante longos minutos. Isso não lhe serviria nunca! Lembrei-lhe, então, a história da humanidade: o casamento por amor é uma invenção, muito recente, do humanismo do século passado, que veio colocar angústias afectivas onde antes, quando os casamentos consistiam em meras fusões de património, e com expectativas conjugais mais realistas, havia estabilidade. Ela afirmou preferir a versão romântica do casamento. Ele, o cínico, declarou que ia tratar de encontrar uma mulher rica...Porque entretanto me evoluiu o pensamento, perguntei ao cínico se achava que as mulheres são, como os homens, embora de forma latente, predadoras do sexo oposto. Se achava que, em condições óptimas de tempo, lugar e vontade, poderá qualquer - qualquer, mesmo - mulher ceder à tentação da lascívia. A romântica abriu muito os olhos e rejeitou frontalmente a hipótese. Pois. Já o cínico ficou-se, calado e, passados uns instantes, afirmou nunca ter pensado nisso. Pudera, pensei eu. Não lembra a ninguém, nem sequer a um cínico descrente na emotividade com mais permanência do que uns meses. Acabou, porém, por concluir que nunca conheceu mulheres assim. Ou é desatento ou sabedor, dir-se-á. Eu acredito na segunda alternativa, bem demonstradora de um cínico bem distante da mera bestialidade. Acredito, também, que há mais cínicos assim, para bem das mulheres e, sobretudo, para bem deles e dos seus amores que, apesar de complicados, são infinitamente melhores do que... lascívias banais.
<< Home